Jornal Estado de Minas

RESPEITO

Leis antigordofobia são boas, mas respeito seria melhor


 
Há algum tempo, estava eu fazendo um curso de formação, porém livre e bastante fora da minha área de atuação, o que funcionava mais como um hobby e comecei a me pegar triste antes das aulas, tentando criar desculpas e subterfúgios para não ir e, somente depois de muito me questionar o que estava por trás desse desejo de não comparecer às aulas, que eu amava, percebi que era por causa das cadeiras. 





As únicas cadeiras disponíveis eram cadeiras plásticas, dessas de bar. Agora imagine você, passar 8h de um sábado sentada numa cadeira plástica. É desconfortável até para pessoas magras, imagine para quem pesa mais de 130 kg?
 
 
 
Parece óbvio dizer isso, mas, por que um curso que é pago - por muitos estudantes - não se preocupa com cadeiras confortáveis a todes? O que não é óbvio é meu encontro com meu desejo de autopreservação e de não me diminuir para caber nas únicas cadeiras disponíveis ali. 

Muito se discute sobre acessibilidade, mas de que tipo de acesso estamos falando? Hoje, uma pandemia e muitos meses depois, me parece insano que eu tenha aceitado, sem exigir algo que me coubesse, me espremer e ficar desconfortável numa cadeira imprópria para as salas de aula. 

Até hoje fico embasbacada quando faço algum evento e percebo que a produção se preocupou com o tamanho das cadeiras e escolheu as mais confortáveis para corpos como o meu. É raro, mas existe. E eu sou totalmente grata por isso. No livro Fome: autobiografia do meu corpo, Roxane Gay detalha um momento em que quase não conseguiu acessar um palco para uma palestra e eu fiquei pensando no tipo de reação que eu teria. Consegui imaginar mil cenários. No entanto, me calei diante das péssimas cadeiras - pra não julgar o valor das pessoas envolvidas - no curso que eu adorava fazer, mas quase abandonei por não caber de forma decente. 





Vale a pergunta: quantas vezes você já deixou de sair de casa e ir em algum lugar com medo de não caber?

É preciso que exercitemos essa retórica. É preciso que a gente se incomode com essa questão. É preciso que ela não seja incômoda só a mim ou aos corpos gordos ou dissidentes.

É aqui também que se faz urgente que você perceba: a sociedade tira direitos de pessoas gordas, direitos estes de ir e vir. Direito ao estudo. Direito à humanidade. Imagine você que nunca se preocupou em caber, considerar ir ou não a um curso que gosta, por causa do tipo de cadeira que há no recinto. 

A gordofobia está presente na vida e rotina de 92% dos brasileiros, conforme uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Opinão Pública e Estatística (Ibope) a pedido da Skol Diálogos e publicada em 2017. 





O estudo mostra que apenas 10% daqueles que manifestaram algum tipo de preconceito contra obesos assumem o que são. Outros 8% também reconheceram possuir algum tipo de dificuldade em aceitar aspectos que fogem do padrão social.

Logo, sabemos que estamos lidando com uma opressão bastante presente, porém pouco assumida. É possível, inclusive, que você esteja lendo esse texto e se reconhecendo neste lugar da opressão, mas, já em seguida vai lançar mão do card da ‘preocupação com a saúde’ ou algo equivalente, apenas para dizer que não é preconceito e seguir mantendo seus privilégios e oprimindo os corpos diferentes dos seus. 

Agora, vem cá, você pessoa gorda que me lê ou é aliada da pauta. Imagine viver em uma cidade em que existe uma lei que garante cadeiras escolares para todos os tipos de corpos? Seria um sonho, não é mesmo? 
 
 
 
Em Recife (PE), a lei 18.832 sancionada pelo prefeito João Campos (PSB) a partir de uma indicação da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB), prevê a inclusão e proteção da pessoa gorda, com garantia de cadeiras escolares adequadas. 





Assim, a cidade é a primeira capital do país com este tipo de legislação. Ponto para Cida Pedrosa, vereadora e vencedora do Prêmio Jabuti em 2020. Mulher exemplar, autora da obra “Solo para Vialejo”, que dedicou a conquista do prêmio às mulheres e ao Partido Comunista do Brasil. Ponto para uma pessoa que está lutando ao lado de quem ninguém gosta de estar nem para a foto. Vitória para os nossos corpos e nossa existência. 

Por outro lado, é importante destacar que a mesma medida já foi implantada, no Brasil, em ônibus e cinemas, por exemplo. No entanto, há pouco ou nenhum cumprimento. 
 
 

Estamos no Setembro Amarelo, mês da saúde mental e da prevenção ao suicídio, como temos falado durante todas as colunas deste período, então, falemos sobre como a gordofobia enquanto um preconceito difundido na sociedade afeta também o planejamento urbano e o acesso da pessoa gorda à cidade. Os padrões utilizados na construção de banheiros, transportes coletivos e até mesmo na mobília dos espaços públicos e privados são reflexo da discriminação e exclusão de pessoas gordas.

Cabe a nós - todos nós - pessoas gordas, corpos dissidentes e pessoas magras, a fiscalização destas leis. A exigência pelo cumprimento das mesmas. O não silêncio diante de cadeiras menores e/ou plásticas em ambientes educacionais. Cabe a nós - todes nós - fiscalizarmos e melhorarmos as existências de todes corpos. 





Lei Antigordofobia em Recife

A boa notícia é que a lei das cadeiras não é a única lei antigordofobia vigente em Recife. Foi também sancionada a 18.831 que corresponde a criação do ‘Dia Municipal da Luta contra a Gordofobia’ em 10 de setembro, quando já é celebrado o Dia da Luta Antigordofobia. Tais ações são frutos do diálogo entre o legislativo e coletivos locais dedicados à causa, como ‘Mundo Plus em Movimento’ e coletivos como ‘Bonita de Corpo’ e ‘Gorda Sim’. 

Os projetos de lei aprovados garantem o combate à opressão e possuem a missão de fortalecer e intensificar o debate, mas não só, serve também para garantir o ensino livre de discriminação ou práticas gordofóbicas e opressivas dentro das instituições de ensino e educação. 

Aqui, cabe pensar na necessidade da criação de leis para garantir o básico, que é o acesso e direito de existir da pessoa gorda. E, por ora, isso acontece apenas em uma cidade brasileira, que é uma capital e que possui uma parlamentar interessada na pauta, bem como um prefeito, disposto a ouvir, acordar e transformar realidades. 





Visibilizar esta pauta - bem como a criação de uma legislação específica - é urgente. Assim como o cumprimento da mesma. Afinal, quem vai fiscalizar o cumprimento da mesma nas escolas?
 
 
Meu papel se faz então o de propor uma reflexão: precisamos mesmo de leis ou de educadores e gestores que pensem para além do próprio umbigo - e das próprias ancas? Precisamos que um educador e/ou gestor escolar sente-se então por horas e horas diárias em cadeiras em que não os cabe e entenda do que estamos falando?
 
Precisamos que as pessoas deixem de caber para que pensem nisso. Ou precisamos de pessoas dispostas a ouvir? 

Poderíamos pensar nas leis como um avanço? Não sei dizer. Talvez. Motivo para celebrar, um pouco de respiro em meio a tanto luto e caos. Pode ser. É um começo. Mas, mais importante seria que não precisasse haver leis para que pudéssemos existir. Que não se falasse em criminalização. Vitória seria o respeito. 

Mas e a criminalização da gordofobia?


Seria um sonho? Seria! No entanto, a aversão preconceituosa contra pessoas gordas não é considerada crime. Por isso, todo e qualquer preconceito é justificado, tolerado e celebrado de forma positiva. 

No site do Senado Federal existem quatro propostas sobre o tema, que pleiteiam coisas como o fim das catracas nos veículos de transporte coletivo e como forma de lutar contra o preconceito e outra propõe, inclusive, que a opressão contra corpos gordos seja tratada como crime hediondo. 





Ocorre é que nenhuma delas está perto da meta dos 20 mil apoios, que é a meta estabelecida pelo Senado para que as propostas inscritas no site sejam discutidas na casa. 

Há quem, como o senador Romário (Podemos- RJ) que tem uma movimentação no senado para combater a cobrança adicional aplicadas às pessoas gordas em aviões, meios de transporte e eventos culturais. 

Apesar disso, não há um acordo na Justiça quando o tema é gordofobia. Embora existam casos de condenações pela discriminação que sirvam de precedentes, a falta de uma legislação específica estabelece que cada caso é um caso e vai do entendimento de cada juiz. 

Entretanto, temos iniciativas muito importantes, como é o caso do Gorda na Lei, em que há inclusive a criação de um guia de como se defender juridicamente contra a gordofobia. 

No meio de tantos argumentos e tentativas, nos resta seguir. Penso que a criminalização só será possível quando conseguirmos alcançar a despatologização dos corpos gordos, já que é a patologia que justifica, atualmente, grande parte das violências contra estes corpos, em nome do que é saudável. E belo. 





Há quem, como a terapeuta e ativista, Sonalee Rashatwar que compara, inclusive, a gordofobia ao nazismo. 

“Devemos criticar o uso da ciência e a produção de conhecimento para continuar promovendo essa ideia de que determinados órgãos são idôneos, capazes e desejáveis. . . é minha gordura que causa minha pressão alta ou é minha experiência de estigma de peso?”, disse. 

Ela também questiona chamando a ciência que afirma que a obesidade é uma ciência gordofóbica, doentia, dizendo que “muitas vezes é, na verdade, ciência eugênica. . . . a ciência eugênica é a ciência nazista”. 

Para encerrar, eu te pergunto: de que lado você quer estar? Do lado de quem permite a existência das pessoas gordas com respeito ou do lado de quem faz de tudo para transformar a nossa vida em um inferno, tal qual um eugenista? Sua resposta é meu inferno cotidiano. 

audima