Imagine a cena: você é uma pessoa gorda. Você sempre foi uma pessoa gorda. Você lida com apelidos, pequenas humilhações cotidianas, reverberações em razão do seu corpo e sugestões de dietas, remédios e médicos o tempo todo. Mais do que isso, você vive com o fardo de não caber em lugar algum. Você entende, na vida adulta, que os corpos gordos não têm vez.
Você já perdeu as contas das ‘piadas’ que foi obrigade a ouvir durante a vida e das troças que fizeram com você por causa do seu corpo. Não importa quão genial você seja, vão te encaixotar como uma pessoa ridícula, ainda que você seja incrível. E tudo isso por quê? Por que você ousou desobedecer - já falamos sobre o tema nesta coluna - e existir.
Agora imagine que você pode, de forma absolutamente legal, não somente responsabilizar quem te agride e faz piadas com a sua existência, mas ainda ser indenizade por isso? Imaginou?!
Pois foi que aconteceu com a dançarina e empresária Thaís Carla. Ela venceu na Justiça, uma disputa com um humorista que trabalha em canal aberto da televisão brasileira. Ele terá que indenizá-la em R$ 5 mil por ter publicado um vídeo divulgando os dados pessoais e imagem da influenciadora digital sem autorização. Na sentença, os juízes reponsáveis pelo caso, Francinaldo Santos Palmeira e Carolina Almeida da Cunha Guedes, da 8ª Vara do Sistema dos Juizados Especiais de Causas Comuns da Comarca de Salvador,
trataram a violação como gordofobia, fato inédito nos tribunais brasileiros.
Na ocasião do ocorrido, o humorista encorajou, através das próprias redes sociais, seus seguidores a publicarem mensagens ofensivas contra a dançarina, o que não deixou brecha para dúvida quanto às ofensas sofridas.
Alegando liberdade de expressão, ele disse que “não pediria autorização a uma gorda para dizer o que pensava”. E, munido do discurso de ‘é minha opinião e tenho direito a ela’, não se furtou em ofender a influencer, confundindo o direito à expressão com discurso de ódio gratuito. Inclusive, essa ‘confusão’ é muito recorrente por quem nos oprime. Reparem.
Escrevo muito aqui sobre não caber. No vídeo usado pelo humorista para se promover, Thaís Carla aparece em um avião falando sobre o tamanho das poltronas e dos cintos de segurança.
Imaginários onde corpos gordos não cabem
Imagina que um dia você acorda, resolve se divertir com seus amigos e amigas e, do nada, você é impedido. Não por uma circunstância específica, mas porque alguém decide que seu corpo não é digno de ocupar determinado espaço e você tem o seu ‘ir e vir’, garantidos essencialmente e por constituições muitas, barrado na porta de uma festa. A resposta: você é grande demais.
Culturalmente, temos simpatia pelo que é grandioso. Exceto por corpos de mulheres, que não sejam só grandes, mas gordas demais.
Existem baladas onde os corpos gordos não tem vez. Assim como empregos, cadeiras, lugares e, o mais preocupante: imaginários.
Para o humorista, é impensável que a dançarina e empresária exista. No imaginário dele, apenas pessoas como ele seria dignas de viver - e teriam, ainda que não, se esforçado o suficiente para isso.
É humilhante, para ele, saber que Thaís Carla , sendo quem ela é, sem ofender ninguém, possui mais seguidores que ele no canal do Youtube e mais que o dobro no Instagram. Imagina o desespero de quem sempre atendeu à norma vigente se deparar com alguém que desobedece isso corporalmente e faz mais sucesso. Como eu disse na coluna da semana passada: de enlouquecer.
E, para quem não é talentoso, tampouco engraçado, sobram as ofensas e o ódio. Temos aqui, na prática, cada um oferecendo o que tem de melhor. E, para Thaís Carla, o melhor é lutar pelos próprios direitos.
Em entrevista à jornalista Naiana Ribeiro, do IG, Thaís disse: “Ele usou da minha imagem indevidamente e ainda lucrou com isso. Pegou imagens de um vídeo meu e foi super gordofóbico. Falou um monte de coisa. Foi um ataque mesmo sobre a minha pessoa e contra todas as pessoas gordas. Gordofobia não é piada", afirmou.
Mas e a criminalização da gordofobia?
Seria um sonho? Seria! No entanto, a aversão preconceituosa contra pessoas gordas não é considerada crime. Nós sabemos que a criminalização da gordofobia ainda é um longo processo.
Mas, ter uma condenação cujo teor é baseado no preconceito já é um avanço. Gostaria de vê-la caminhar junto com a despatoligização dos corpos gordos, já que é a patologia que justifica, atualmente, grande parte das violências contra estes corpos, em nome do que é saudável. E belo.
Para o advogado de Thaís Carla, Ives Bittencourt, as atitudes gordofóbicas ocorrem quando há violação de direito de pessoas gordas, bem como ridicularização e humilhação. De acordo com ele, o humorista, além de de usar a imagem sem autorização, ainda contribui para perpetuar discursos de ódio contra grupos oprimidos, algo que dee ser rechaçado pela justiça brasileira.
Também em entrevista ao IG, ele disse: "Pela primeira vez, foi visto um amparo direto para violações gordófobicas, gerando jurisprudência para toda comunidade plus tomar coragem de buscar reparações para esse tipo violência, que até então era invisibilizado. Apesar de ainda caber recursos, sem dúvidas, essa sentença é um marco para o gordoativismo”, explicou.
Um dia triste para os gordofóbicos no país é sempre um dia feliz para quem luta pelos direitos de existência dos corpos gordos e dissidentes.
Daqui, sigo sonhando com o dia que ações jurídicas não serão mais necessárias. Bem como as leis. Sigo almejando que a vigilância não seja mais necessária, mas que o respeito seja urgente. Sigo só querendo existir e, novamente, sem me diminuir para caber. Será que algum dia teremos vez?