“Se eu falar que as pessoas na rua começaram a ser mais gentis comigo depois que eu emagreci quase 30 quilos… vocês vão achar que eu sou louca?”.
Essa é a frase de um tuíte da jornalista e quadrinista brasileira Cecília Marins, que recebi na minha caixa de entrada do Twitter no último sábado, depois de um dia intenso de trabalho.
Fui ler no domingo e, confesso, gostaria de ter ficado surpresa, mas não fiquei. E talvez o choque da coisa toda esteja justamente aí.
Nós, pessoas gordas, nos acostumamos com a invisibilidade - apesar dos nossos corpos imensos e, mais do que isso, a ser mal tratades em razão destes corpos sem, sequer, conseguir nomear, entender e, tampouco, revidar.
E o tuíte segue. Até o momento que eu escrevia está coluna, com 82 mil reações e muitos relatos de pessoas que, ora ora, vejam só, emagreceram e passaram a ser tratadas como pessoas.
Incrível, não é mesmo?
Os relatos vão desde pessoas que passaram a ser vistas depois de perderem muitos quilos, até pessoas que passaram a se sentir pertencente ao mundo somente quando encontraram a magreza. Elogios como linde, inteligente, entre outros só se tornaram possíveis também diante da perda de peso.
Ou a pessoa “se esforça o suficiente” pra ser magra, nessa falácia incansável, ou ela enfrenta o mundo opressor que é imposto pela gordofobia por “escolher” habitar um corpo gordo.
Neste caso, a desobediência custa caríssimo.
Na leitura social, a beleza só caminha de mãos dadas com a magreza. E com elas, a única via possível pro afeto.
Logo, alguém vem dizer algo sobre a saúde, ignorando que saúde mental é saúde e que, o fato de alguém ser gorde não garante que haja problemas de saúde, mas, ainda que fosse, desde quando está liberado tratar mal pessoas doentes?
E aí, chega o que chamam de “privilégio da beleza” ou “pretty privilege”, do conceito original, em inglês, e eu prefiro chamar de privilégio do padrão, que é o ponto de partida e desemboca na gordofobia explícita.
Em vários relatos, pessoas dizem que passaram a receber desconto em cantinas escolares por terem emagrecido, deixaram de ser “saco de pancadas” da turma e alçaram o almejado posto de ser desejada pro várias pessoas
Me chama a atenção o fato de que as pessoas erguem-se, continuamente, pra dizer que não são opressoras, mas escancaram o quanto são - e sofrem - em posts assim
O que evidencia o motivo de as pessoas recusarem o lugar da gordura. Ele está atrelado a muito sofrimento. E quem é magro, sobretudo, sabe disso. E sabe dos privilégios que tem. E luta, arduamente, pra mantê-los, do jeito mais perverso, inclusive: alimentando a opressão contra pessoas gordas
Quando uma pessoa gorda emagrece - e posso afirmar com base na minha própria vivência - ela não está, necessariamente, querendo ser magra. Mas quer ser humana. Quer sair na rua e não ser hostilizada. Quer ser desejada. Quer acessar o afeto para além do fetiche.
Sempre lembro de uma conversa com uma amiga em que ela dizia que nunca havia recebido flores, convites pra sair e jantar e que taxistas, motoristas de transporte por app, mensageiros e carregadores nunca pegavam a mala dela.
Corpos gordos são privados das pequenas gentilezas e, essa forma de trato, acreditem, mata mais que a gordura corporal em si. Já falei disso aqui inúmeras vezes, com dados e provando, por A%2bB que, sim, a opressão está aí.
O capital erótico das pessoas gordas é escalonado ao contrário, excluindo qualquer possibilidade de existência social que não seja subalternizada em razão do corpo.
E aqui. E o olhar enviezado que te lançam no elevador e preferem “esperar o próximo”, e no chilique que dão no avião pra não sentar do seu lado. E nas pessoas que preferem ir em pé no transporte público a encostarem em você um banco.
Perdi as contas de quantas vezes fui hostilizada, de quantos olhares enviesados desviei, de quantas pessoas me cuspiram não rua, me jogaram pedras, me agrediram. Ouso dizer e sustentar que os olhares de nojo, os risos de canto de boca e a invisibilidade doem mais do que as agressões direcionadas.
É preciso emagrecer pra ser viste e amade? Pra ter uma vida “comum”?
O mais triste é que não tem “remédio” pra isso, mas também não está remediado. É estrutural e precisaríamos mudar toda forma de pensamento social pra conseguir humanizar publicamente pessoas gordas.
Isso tem zero a ver com autoaceitação. O fato de eu me amar, me enxergar linda e me cuidar não me blinda de ser agredida, até mesmo fisicamente, nas ruas, por ser uma pessoa gorda. E é preciso um trabalho cuidadoso e minucioso pra que eu não seja violenta com o mundo, mas consiga, de alguma forma, existir sendo quem eu sou.
O privilégio do padrão assola quem está fora dele. Vale tudo pra ser tratade de forma mais humanizada?
Ainda entre os muitos relatos que o tuíte suscitou, há pessoas que contam como emagreceram em períodos depressivos oh após tentativas de suicídio e como isso rendeu elogios e pedidos das pessoas pra que se mantivessem magres, além, claro, do tratamento mais cordial.
Esse ponto é sensível, mas urgente. Escancara que não é - e nunca foi - sobre a saúde.
A grande questão é: por quê?
E eu vou repetir, à exaustão, essa pergunta: por que você faz questão de ser cruel com as pessoas gordas?
É preciso que alguém renuncie ao que é e quem é, essencialmente, pra ser tratade como uma pessoa?
Sabendo que não haverá resposta - nem negociação pela minha humanidade, seguirei incomodando, carregando sozinha a minha mala e tratando os olhares com desprezo e as agressões gratuitas que recebo, mas, na expectativa de que você trate sua escrotidão, a forma como você perpetua a opressão e o modo como você é excludente com pessoas gordas.