Quantas vezes você já entrou num Uber, pra ir à praia, de férias e foi perguntade pelo motorista sobre quantos kg pesa?! Se você for magre ou gorde menor, já sabemos que nenhuma. Mas se ousar ser gorde maior, arrisco a dizer que já aconteceu.
Ao menos comigo, foi o que rolou nessa semana. Dias depois da morte da cantora sertaneja Marília Mendonça - e da forma ridícula como jornalistas trataram uma carreira brilhante de forma desrespeitosa e grotesca ao se referirem ao corpo da artista, como se esse fosse um fator que determinasse ou regesse o sucesso da mesma. Mas, não quero me valer disso aqui. Muita gente já falou, muito bem, inclusive, sobre o tema.
Fato é, quando o motorista de Uber se virou e me perguntou quantos kg eu peso, fiquei atônita e incrédula. Apesar de ser um corpo gordo a vida toda, isso me deixou desconcertada. Talvez porque eu esteja de férias.
Talvez porque eu estivesse relaxada. Talvez porque eu estivesse como pessoa física e não com meu avatar das redes sociais, dizendo o que quer que seja sobre isso - e, baixar a guarda e só existir, sem luta, me jogou com toda força no movimento da minha existência pra me lembrar por que eu falo - e escrevo - tanto sobre: pra existir.
A fala do motorista foi pra me lembrar que eu não poderia existir sem que isso fosse apontado, lembrado ou se tornasse uma questão. Eu não poderia simplesmente embarcar na corrida, descer no meu destino e pagar por isso em dinheiro, como qualquer pessoa. Meu custo é maior: eu preciso pagar com a saúde mental, a física - que foi exigida logo em sequência, quando ele disse ter feito uma bariátrica - e em existência.
Corpos gordos só existem se taggeados socialmente. Ali, não importa absolutamente nada. Quem eu sou, do que eu gosto, meu vício em cafés, o que eu já vivi, as muitas viagens que adoro fazer, com o que eu trabalho e como amo o jornalismo, os meus sonhos pra vida, meu medo de estátua e de lagartixa, o nome dos meus animais de estimação, meus orixás, meu signo, as leituras de Freud e Lacan que me arrisco a fazer, os livros aleatórios que leio, a cor de esmalte que eu amo, a rinite que eu tenho, a COVID-19 que eu sobrevivi, as amigas que já perdi, os amores que já vivi.
Absolutamente nada disso importa. Importa saber quantos - fucking - kgs a balança marca quando eu subo. E qual a relevância disso no final do dia, se eu entrego meus relatórios, a minha coluna, o meu trabalho. Se os boletos estão em ordem, se eu sento com minha família pra fazer uma refeição, ver uma série, se dou risada com meus amigos de piadas só nossas, se toda noite caminho com o cachorro, se amo mais natação que você?! Que diferença isso faz de toda minha subjetividade é anulada porque meu corpo é gordo?!
Obviamente, não respondi a pergunta e, me fiz de sonsa, pra não entrar numa briga logo cedo, no meu primeiro dia de “férias”. Meu analista ficaria orgulhoso por ver que meu investimento libidinal está sendo gasto nesse texto e não numa discussão infrutífera com o motorista.
Mas, pra não discutir, há um custo. Me fazer de sonsa e seguir a vida custa a anulação - ainda que breve - do que eu acredito e artículo discursivamente aqui: eu tenho direito e mereço existir como qualquer outro corpo.
Em sua coluna na última segunda-feira a psicanalista Vera Iaconelli disse: “Se tivesse que elencar a maior mazela humana, diria que é nossa impossibilidade de reconhecer que há uma vida que vale tanto quanto a nossa encarnada no corpo do outro”.
Não só tendo a concordar, como a endossar. Por que, na minha vida comum, minha existência não é só invalidada, como dificultada e atravessada em muitos níveis.
Eu tô de férias. Mas sigo trabalhando. No entanto, demorei muitos anos pra perceber que não são as demandas de trabalho que, necessariamente, me cansam. É existir. E eu já falei sobre isso nessa coluna. E já falei também sobre como é urgente ser desobediente pra seguir vivendo.
No segundo dia de férias, recebi uma mensagem de uma colega de trabalho dizendo que uma artista convidada do evento que trabalhamos juntas não havia conseguido embarcar pro pais de origem no Aeroporto Internacional de Guarulhos porque ela tem um problema de mobilidade em razão de uma doença que afeta as pernas (e tem zero a ver com a questão do peso) e não havia, no maior aeroporto da América Latina, uma cadeira de rodas grande o suficiente para transportá-la do check-in ao portão de embarque.
Tive uma vontade imensa de chorar. Às vezes, a impotência e a força social de todos lugares e pessoas pra que nos sintamos mal com nossos corpos é tão grande, que dá certo! A gente acaba se sentindo mal e responsável pelos maus tratos que sofremos.
Ouvir esse relato da minha amiga me fez lembrar que no avião, me fizeram mudar de lugar, mesmo eu tendo pago um assento maior, porque “segundo a Anac, pessoas gordas não podem se sentar na saída de emergência”, no entanto, não há, em lugar algum, essa informação especificada.
Inclusive, comissários tendem a ter um cuidado exacerbado com pessoas gordas - eu mesma, no caso - como se eu fosse incapaz, mas, estando ali, só sou gorda, com a mesma mobilidade de sempre, carregando minhas coisinhas, resolvendo meus BOs, enfim, voando a trabalho e, dessa vez, de férias.
O tempo todo, há um berro ensurdecedor é indivisível, que nos lembra sobre como nossos corpos gordos são inadequados. É isso fica mais evidente quando só estamos fazendo coisas cotidianas, como pegar um voo, um Uber, um ônibus ou estamos na praia.
Aliás, hoje, no terceiro dia de férias, estava eu, bem plena e feliz, desconcertada, deitada numa esteira de madeira, à beira mar, quando, um pai com duas crianças e uma moça estavam por ali também. Uma das crianças, que não devia ter mais que 5 ou 6 anos, se virou pra mim e disse: olha, papai, como aquela moça é gorda. Olha só o tamanhão da barriga dela.
E, da minha parte, tudo bem. Crianças se admiram e comentam. Mas eu fiquei pensando em: onde ele ouviu sobre pessoas gordas pra reparar de forma negativa? Quem fala sobre isso com ele? Por que ele não consegue achar natural? Na vida dele, só existem pessoas magras? E, mais uma vez, lá ela estava. Quem? Ela mesma, a inadequação.
O pai - pasmem - chamou o menino pra perto e falou bem baixinho com ele, dizendo que não é algo legal reparar no corpo das pessoas, que as pessoas têm direito de ser quem são, com os corpos que tem e tudo bem com isso.
Fiquei chocada. Não esperava que ele tivesse uma reação tão bacana. E aliviada, um pouco, por saber que ele teve!
No entanto, isso me leva a pensar sobre a naturalização dos corpos. A Thaís Carla (dançarina, empresária e gorda) sempre diz que quer educar o olhar das pessoas para a existência dos corpos gordos e isso nunca fez tanto sentido.
É perverso pensar que a maior parte da população brasileira é gorda, no entanto, que sequer a outra parte está acostumada a ver e conviver com estas pessoa, seja na praia, de férias, em aeroportos, em cima do palco fazendo sucesso.
Todo exercício de existência está, portanto, em seguir, teimar, desobedecer, abusar da resiliência, do papel de sonsa, das horas no divã, dos amigues, da vontade de viver - e neste caso, sobretudo, de gozar as férias. Em paz, já seria um capítulo separado. Aparentemente, nem a morte precoce permite isso. Então, sigo escrevendo, como forma de luta, pra que alguns de nós consigam, em algum momento, em vida.