Na balada eu sou sempre aquela amiga divertida, que conversa com todo mundo, ri alto, sai arrumada, mas nem tanto, só o suficiente para ser diferente da roupa do dia a dia no trabalho e que, ao final, quando as luzes ficam ainda mais foscas, está sozinha. Sou aquela que, na roda de amigos, ninguém nunca pergunta se está saindo com alguém ou insinua que a pessoa da mesa do lado olhou e paquerou.
Na lista de contatos, meu nome é sempre o da emergência. Precisam chorar por um término? Me ligam. Precisam sair pra um porre depois de um fora? Me ligam. Precisam de um conselho sobre uma mudança profissional? Me ligam. Precisam de companhia sábado à noite? Ligam para outras pessoas - provavelmente, magras.
Eu sou o que vocês provavelmente conhecem como A MELHOR AMIGA GORDA. Fato é: todo mundo tem uma melhor amiga gorda. Ou teve. Sou aquela companhia legal, inteligente, divertida, generosa, boa ouvinte, agradável. Poderia ser namorada? Poderia! Caso eu não fosse gorda. Sendo gorda, eu já tenho bem delimitado meu papel na vida social da maior parte das pessoas que praticam, de forma política e assertiva, a decolonialidade dos afetos.
E este papel é, na melhor das hipóteses, o da melhor amiga. Quase sempre, a que tem também as fotos apagadas ou ocultadas nas marcações, afinal, “é queimação de filme ser viste ao lado de uma mulher gorda”, não é mesmo?
Ser a melhor amiga gorda é estar na contramão do que já escrevi aqui sobre desejo e fetiche dos corpos gordos. É caminhar de mãos dadas com o desejo da amiga inteligente. Aquela para quem você escreve pedindo dicas de filme, de podcast, de livro, etc, mas nunca escreve para convidar para ir ao cinema, jantar, assistir um filme, a piscina.
É aquela amiga que, quando você combina algo, é em segredo. É aquela com quem você tem medo de ser visto ao lado. É aquela de quem você deseja a mente, mas não o corpo. É aquela pessoa que você até namoraria, “se se cuidasse mais e emagrecesse um pouco”. É aquela pessoa por quem você tem desejo de estar perto, mas não de ser visto junto. É aquela pessoa que vale a pena, mas só se for em segredo, porque você jamais arruinaria sua reputação social para ter ao lado alguém que não é magra suficiente.
É aquela que só cabe do seu lado se for no escuro. Se for em segredo. Se for no “vai na frente que eu vou logo depois”. Se for no “não vamos contar para ninguém, quero te preservar”. Ser a melhor amiga gorda é aquela que tem a mente e tudo que ela representa fetichizados, mas não o corpo.
É ser jogada no abismo do lugar onde nem corpo, nem mente. Tudo que ela é caminha dissonante do conjunto. Ou desejam só o corpo, como fetiche. Ou desejam só a mente, sem toque. É sempre o lugar do afeto pela metade. Das partes que não se juntam. O vazio que nunca é preenchido.
Deixo minha adolescente falar neste texto. Durante muito tempo, aceitei, de bom grado esse papel, afinal, ele era melhor que nada. Melhor que a solidão devastadora a qual nós, corpos dissidentes, sobretudo mulheres gordas maiores somos relegadas, melhor que não ter amigos - afinal, pensava eu que bastava alguém dizer que eu era uma melhor amiga, que isso me tornava. Melhor que ser ainda mais rejeitada do que eu já me sentia. Eu apenas entendia que era melhor. E, nesse entendimento, passei a permitir muitas violências, afinal, ser a melhor amiga gorda é também conveniente.
Talvez a conveniência seja a palavra. A melhor amiga gorda é CONVENIENTE. É conveniente ter uma. Eu sempre me esforcei muito para agradar, me fazer necessária, logo, além de tudo que eu já sou, ainda oferecia de brinde o meu medo de ser rejeitada, o meu desespero pelo amor e aceitação alheias, a minha necessidade de me sentir pertencente, ainda que eu estivesse fazendo um esforço imenso pra isso.
Ter uma melhor amiga gorda garante o card da diversidade no seu grupo. Garante escuta. Garante, por vezes, sexo no melhor esquema ‘amizade colorida, mas não conta pra ninguém não’. Ser a melhor amiga gorda, percebo hoje, foi uma das piores violências ligadas à gordofobia que já me permiti sofrer.
E digo me permiti, porque, somada a opressão estrutural que é pra lá de perversa, tem também a minha parte devastada, sintomática, que aceita qualquer migalha de afeto, inclusive a da conveniência, para ser minimamente amada. Ou ter essa ilusão de que estaria sendo.
Agora, escrevo esse texto para dizer que eu não aguento mais ser a amiga gorda. Eu não suporto mais ser a pessoa do grupo que é tratada, como diríamos na minha infância de millenium, como café com leite. Eu não aguento mais ser a pessoa conveniente das rodas, ser a deixada de lado na balada, ser a solitária do grupo, ser a “psicóloga” não institucionalizada da turma, que tem sempre um colo, um conselho, uma escuta para oferecer, enquanto desmorona na própria rejeição.
Eu não suporto mais ser a melhor amiga ‘colorida’, que mantém ‘quase relacionamentos’ nunca rotulados para que nunca se tornem públicos ou como garantia de que nunca haverá qualquer tipo de cobrança. Eu estou farta de ser a melhor amiga gorda. De ser a amiga que os amigos populares dizem: você é incrível, claro que eu te namoraria, mas somos amigos, enquanto se atraca com outra amiga, na ponta extrema do recinto.
De ser a amiga que vai embora sozinha e, horas depois, acorda para saber como foi a noitada do grupo, assistindo em flashes contados o que poderia ter vivido. De ser sempre a que está em standby, para quem ligam quando as possibilidades de diversão já se esgotaram. De ser o estepe quando as amigas magras já se ajeitaram em outros rolês. Quando o familiar é urgente. E só. Eu cansei de ser familiar.
De desempenhar o papel que a gordofobia me deu e que eu, sem escalação, me embrenhei na personagem como o sonho adolescente de ser atriz de teatro. Encarnei tão bem, que sair do figurino, abandonar os cacoetes e deixar na coxia o misto de persona rejeitada e ao memo tempo, confiável, é um baita desafio.
E, rejeitar esse papel exige uma energia que, até eu perceber que estava atrelada a personagem da amiga compreensiva, caricata e sempre deixada de lado por um amor, um par de pernas mais fino, um corpo menor que caiba nos espaços e expectativas me rendia exatamente ao que esperavam de mim: pouco barulho ou exigência e um contentamento excessivo com as migalhas de afeto.
Mas, eu não sou uma exceção e nós sabemos disso também. Aliás, A MELHOR AMIGA GORDA é algo tão comum quanto filmes de high school na TV aberta durante a tarde ou no seu streaming favorito. Aliás, nestes espaços, existe inclusive um termo próprio para se referir a pessoas como a que eu fui a vida toda, praticamente. “The Duffy”, que significa “Designated ugly fat friend” ou, na tradução livre, “típica amiga feia e gorda”.
Combinemos que o estereótipo é pra lá de convencido - e condenável. Quase sempre, a MELHOR AMIGA GORDA sou eu mesma. Aquela garota que é inteligente, mas aparece como coadjuvante nas histórias, sobretudo de amor da melhor amiga, a protagonista. A Duff praticamente vive em função da amiga magra e padrão, ouvindo e vendo suas histórias quase como uma espectadora, entendendo que nunca poderá viver as mesmas experiências - a menos que emagreça, é claro - ou que, num passe de mágica, enxergue o quão incrível é e pare de se contentar com as migalhas.
Torço incansavelmente pela amiga gorda e invisível dos roteiros, desejando que ela, aos 16 anos, se perceba mais rapidamente do que eu me percebi - com 36 e tudo mais, vocês sabem.
A melhor amiga gorda é quase o cérebro da melhor amiga magra. É ela que traça planos e ajuda a ‘bonita’ a obter êxito na vida escolar, amorosa, etc, enquanto vê a própria passar, sem se ter na outra ponta para chegar onde deveria estar.
Por outro lado, acho injusto que o “caminho mais fácil” para acessar qualquer tipo de afeto seja emagrecer e negar quem sou, de fato, para ser amada. Ora, se é amor, deveria ser da forma como sou, gorda mesmo. Mas nós - embora vocês tentem, a todo custo, negar - sabemos que não é assim que funciona.
Sendo honesta, eu não sei como funciona. Pra mim, nunca funcionou. Cansada das migalhas, deixei muitas mesas onde o amor não era servido (obrigada pelo conceito, Nina Simone) e passei a me sentar sozinha. Na solitude - já sem tanto medo da solidão - consigo ser inteira e conectada comigo mesma.
Isso faz de mim uma mulher incoveniente, a quem nem todes querem mais chamar de MELHOR AMIGA GORDA e que delícia que tem sido não carregar mais esse fardo. Ser melhor, agora, só se for na exigência do afeto que sei que mereço, sem servir de trampolim ou escada para quem quer seja, tampouco pessoas magras. E na balada, que contei lá no começo, continuo sendo alegre, dançante e divertida, assim como na vida, mas agora, só para quem realmente está comigo, no escuro ou quando as luzes se acendem. Eu sigo acesa, queimando.