E é isso, terminando 2021, esse ano que foi tudo, menos convencional, me pego refletindo e analisando meu papelzinho de metas a curto e longo prazo, que tracei nas primeiras horas dele. Delas, somente comprar um tênis novo para caminhar foi riscada a caneta. Viajar mais, conseguir guardar um dinheiro e fechar contratos de trabalho melhores seguem para serem reanotadas, ou não, na lista de 2022, acrescidos das muitas coisas que não fiz.
A marcação cíclica do tempo, acompanhada do balanço inevitável e individual é o que marca uma parte do nosso laço com o mundo. Mas, este ano acaba como se não tivesse começado. As parcas lembranças se confundem entre um ano de 2020 que começou promissor e talvez, só termine agora, o dobro de voltas ao sol depois.
E que importância teria a minha lista se, quase 620 mil vidas perdidas depois de eu conseguir riscar apenas um item dela? Chego às vésperas de um novo ano sem tanta esperança como costumávamos ter antigamente - e como bem lembrou a escritora Natalia Timerman no início da pandemia que mudou nossa relação com o tempo, evocando Renato Russo: “o futuro não é mais como era antigamente”.
Temos hoje a urgência do agora. E, para fazer jus ao tema desta minha coluna isso passa pelo corpo. Não sabemos se é o fim de um ano, do mundo, ou como diria a banda Eva, da aventura humana na terra. Mas sabemos que precisamos vivê-lo em sua plenitude, intensidade.
Ainda sim, isso tem pouca importância. Não dá pra ser feliz com novas cepas de vírus entre nós, com notícias de co-infecção de Covid-19 + Influenza, com negacionistas que não só se prejudicam, mas favorecem o surgimento de variantes que matam não só nossos sonhos, mas nossas perspectivas de amanhã. Os encontros estão ameaçados e não ter conseguido cumprir uma lista de coisas a fazer num país que lida com enchentes em inúmeras cidades, enquanto lida com um genocida no poder e pandemia (s), parece pouco.
As pessoas estão morrendo: na mão da polícia, da necropolítica, de fome. Enquanto isso, me angustiar por não abraçar todos amigos de uma vez pode parecer nada. E esse comparativo me assusta toda vez que o faço. E minha lista de desejos fica menor. Mas, ainda sim, me parece ínfimo quando penso no número assustador de pessoas gordas que se mataram durante esses 365, vítimas da gordofobia cotidiana.
Fato é que a folha do calendário muda, mas, nada, desta vez, muda de fato. Por mais que coloquemos nossa melhor camiseta com frase de efeito, nossa roupa íntima seja lá de que cor, vamos seguir.
Mas, para além do espectro macro e das dores que sentimos com um ano tão descontrolado e que colocou à prova todas as nossas certezas, longe de querer romantizar a pandemia, será que 2021 foi mesmo um ano tão ruim no âmbito individual ou foi apenas o ano que aprendemos que não temos controle sobre absolutamente nada, inclusive sobre os nossos privilégios?
Digo isso também do lugar de pessoa privilegiada que, já no segundo ano da pandemia, teve crise de ansiedade vendo todos os planos daquele mês - sem imaginar que seria por tanto tempo - ruírem.
No entanto, sugiro que usemos estes últimos momentos antes de saudar o novo ano para refletir. O que de fato vai mudar? Já sabemos que a pandemia segue, então, além dela - que se mostra inflexível e persistente para nos acompanhar para 2022 - o que mais levamos para o primeiro ano da próxima década?
Estamos há 100 anos da Semana de Arte Moderna de 22 e como pensar em revolucionar através da arte num cenário de guerra? Aliás, ninguém nunca nos contou que, durante períodos históricos, ainda sim, as pessoas trabalham, estudam, escrevem colunas e, são opressivas umas com as outras. Mesmo que o mundo - ou seus mundinhos - esteja acabando.
Da minha parte, quero deixar os medos, a mania de controle, a falsa sensação de que podemos planejar qualquer coisa. A pandemia serviu para que eu revisse minhas prioridades e, entre elas, viver de uma forma menos enlouquecida talvez seja a meta n° 1 da lista de desejos para o próximo ano.
Meu outro desejo é, de fato, que eu possa existir. Só existir, sabe? Sem precisar ficar justificando isso o tempo todo. Mas, pra isso, eu precisaria da ajuda de vocês e, por isso, tô lançando esse texto motivacional, que beira a autoajuda, para pedir: sejam menos gordofóbicos neste novo ano.
E eu espero, de coração, que em 2022, vocês parem de postar foto de antes e depois. Que entendam que tal prática só diz que um tipo de corpo é inadequado e que ele foi ajustado para entrar no padrão tão almejado.
E aproveito para chamar a atenção: se, em 2021, você esteve em pânico por estar engordando, eu tenho que te dizer que você faz parte de um grupo privilegiadíssimo da população, já que, neste mesmo ano, houve um aumento de três milhões de brasileiros vivendo em situação de insegurança alimentar grave, totalizando 19 milhões de pessoas passando fome no nosso país.
E sim, pode parecer um contrassenso falar de gordofobia num país em que as pessoas morrem de fome, mas é também pra gente repensar: 2021 foi um ano tão ruim assim ou somos nós que estamos habituados a ter tudo com imediatismo e na mão e, diante da nossa impotência frente a um (ou vários) vírus invisível e mortal, tivemos que lidar com a falta de tantos privilégios?
Meu pedido, na virada do ano, enquanto agradeço por estar viva, será para que parem, apenas parem, de dizer que pessoas gordas não são saudáveis. Que parem de nos oprimir de forma patologizante.
Vou pedir, também, pra que a gente se trate melhor, de forma menos violenta e com mais tolerância às incoerências, que são tão parte da vida e do que somos. Que possamos conviver com as ambivalências que nos fazem humanos.
Eu já falei, no meu texto do Natal, sobre as piadinhas de fim de ano sobre comida, emagrecimento e corpos. E é isso. Usemos, pois, as piadas de carros voadores que imaginamos, para repensar que mundo queremos: um que exclua as pessoas sob o argumento de saúde ou um que acolha todes?
2022 dobrando a esquina e ainda temos que ler que marcas ‘não conseguem’ fazer roupas maiores nas suas grades, que lojas ‘não conseguem’ roupas bonitas das marcas que trabalham. 2022, gente! Se vocês não conseguem isso, por que se forçam a acreditar que a pessoa consegue - e quer - mudar seu corpo para caber? Assumir que é gordofóbico é mais fácil, não?
Deste ano, fica a certeza que fiz menos do que gostaria, mas mais do que esperaria num ano tão instável. E que bom. Espero que, em 2022, existir seja menos penoso e aí, talvez, a gente possa voltar a sonhar e imaginar futuros possíveis pros nossos corpos e desejos.
Seja bem-vindo, 2022: que possamos viver o hoje sabendo que só temos ele.
Feliz Ano Novo!