Jornal Estado de Minas

CORPOS DISSIDENTES

Se você tem medo de engordar, você é uma pessoa gordofóbica


 
“Imagina vcs descobra os transtornos alimentares então, e que nem tudo gira em volta da tua banha” (sic). 

A frase acima foi retirada de um tuíte direcionado a mim nesta semana. É assim que pessoas gordas são tratadas e isso não é uma novidade por aqui. Mas é uma novidade a sofisticação do discurso gordofóbico. Toda vez que alguém aponta que o medo de engordar é gordofobia, alguém se levanta para lançar o card: “mas você não pode dizer isso, eu tenho transtornos”. 





Precisamos pontuar, inicialmente, que nenhum transtorno alimentar ou de imagem é desculpa para a gordofobia. 

Em segundo lugar, transtornos de imagem e alimentares, tais como anorexia, bulimia, etc. nem sempre são visíveis a olho nu, tal qual corpos gordos, em que se é impossível esconder a condição física, logo, usar essa carta como opressão reversa é perversão, assim como quem tenta emplacar “racismo reverso”, “orgulho hétero”, etc. E não, não estou relativizando transtornos, mas entendendo que, se eles existem, o melhor caminho não é atacar pessoas que já sofrem opressão e reforçar que ‘tem pavor de ser gorda’ para uma pessoa gorda, mas buscar ajuda e tratamento adequados. 

Percebo, com frequência, que os cards curingas da gordofobia vão se renovando. Quando não foi mais aceitável chamar pessoas gordas de feias, passaram a se preocupar com a saúde, como tais argumentos já são refutados cientificamente, passam a usar transtornos para justificar. E, conforme vamos derrubando as estruturas, outras formas vão aparecendo na mão de opressores que esperneiam querendo um alvo para violentar.  

Mais ciência, menos desculpas

Para ir além, convidei dois especialistas em assuntos e estudos do corpo gordo e também em saúde mental e nutrição para explicarem, com embasamento teórico - bem bonitinho, do jeito que o manual de redação manda - por que o uso de transtornos alimentares para justificar gordofobia é violência. 

De acordo com o nutricionista especializado em comportamento alimentar, Erick Cuzziol, num primeiro momento, precisamos entender de onde surge o discurso que faz as pessoas perceberem o peso e a gordura e problema, criando o estigma. 





“A gente não fala, por exemplo, ‘estigma da região/regionalidade’, a gente fala ‘xenofobia’. A gente não diz ‘estigma da sexualidade’, a gente diz ‘homofobia’. Assim, quando falamos de gordofobia, estamos falando de um pensamento que faz a pessoa ter crenças que não são reais. Quando vemos a foto de uma pessoa gorda na praia, de biquíni, podemos nos identificar e nos sentirmos livres para ser e existir ou podemos temer a situação, fazendo com que tenhamos posturas rebeldes e opressoras. Mesmo sem perceber, estas pessoas não conseguem se questionar o motivo do medo de engordar”, explica. 

Cuzziol acredita que ainda temos um longo caminho na percepção da gordofobia como estigma e impedimento de acesso à saúde por parte de pessoas gordas, o que gera ainda mais transtornos. 

“Quem pratica gordofobia não consegue, às vezes, por causa do transtorno, se perguntar: por que eu tenho raiva dessa pessoa gorda? Por que eu tenho medo? A magreza se tornou um valor social, ela não se tornou uma questão de saúde. Por mais que digam que é uma questão sobre ser saudável, não é. Quando as pessoas começam a discursar, o medo é de pertencer a um grupo que enfrenta uma opressão que põe em risco a vida de quem sofre. Existem pesquisas e publicações fora daqui que provam como o estigma prejudica a vida da pessoa, independente do Índice de Massa Corpórea (IMC). Não precisa ter um IMC alto para que o estigma e a gordofobia prejudiquem sua vida”, acrescenta. 


Como nasce um transtorno e ele vira uma opressão

O nutricionista Erick Cuzziol (foto: Divulgação)
Eu já trouxe, nesta coluna, diferentes estudos, publicações, artigos e novidades sobre o tema dos corpos gordos no mundo, em diferentes perspectivas. Seja pela arte, seja pela nutrição, pela psicanálise, pela medicina. Em todos eles, repetimos o óbvio: só queremos existir - e isso inclui ter os direitos que pessoas magras têm. 





Aparentemente, as barreiras seguem sendo muitas. Ainda temos a difícil tarefa de dialogar não só com os médicos que produzem conhecimento e prática no mundo, mas com a nossa colega do lado que não passa um dia sequer sem postar - e tentar vender - o ‘método infalível’ (parece o Cebolinha!) dela para perder até 7 cm de abdômen, abrindo mão da farinha branca e ingerindo carboidratos, oferecendo dietas sem qualquer qualificação profissional para isso e vendendo a magreza como o único estilo de vida possível. 

Como eu já disse, neste ano - e estamos só no dia 11 ainda - minha vontade de existir, desejar e ser feliz  é maior do que minha vontade de brigar, então, simplesmente, elimino da minha vida toda e qualquer pessoa ou sinal de gordofobia. De clientes a ‘amigos’. De potenciais paqueras a futuros contratos envolvendo alguma grana. Onde a magreza for celebrada, eu não estarei. 

E veja bem. Você, pessoa magra. Pode até achar/se sentir uma aliada. Mas será que você é mesmo? Quando você tem medo de engordar, você está sendo gordofóbica. Quando você diz: tudo bem você ser gorda, mas eu não quero ser”, isso também é gordofobia. Sentir repulsa por um corpo gordo, é gordofobia. Não se relacionar com pessoas gordas, é gordofobia. E dizer: ah, mas é questão de gosto é muito 2014. Argumento que não cola, pois sabemos - mas tô aqui, pacientemente, explicando com evidências e argumentos científicos - que gosto é construção social. 





Quando você diz “eu te admiro por ser quem você é”, mas corre para se pesar assim que come e evita, a todo custo engordar, é gordofobia. Quando, acidentalmente, você admire que “tem pavor de ser gorda”, é gordofobia, ainda que você pense que é palatável dizer isso, mas saiba que não pode dizer “eu tenho pavor de ____ (insira aqui qualquer outra característica de opressão estrutural”. 

Então, meu bem, está na hora de rever seu politicamente correto. Ou de deixar de ser gordofóbica. As duas coisas não vão co-habitar mais. 

E, incomodarei lembrando como isso é opressivo. Sabendo disso, sei também que muita carapuça será vestida. E muito ataque virá. 

O que eu posso fazer? Seguir promovendo a informação, lidando com os haters que vão me comparar aos negacionistas antivacina e dizer que, assim como eles, por causa do meu corpo gordo, eu gero despesas e sobrecarrego o Sistema Único de Saúde (SUS) por causa de uma escolha minha. 





Dito isso, volto no bate-papo que tive com Erick Cuzziol, em que ele revela como o estigma é forjado em informações que não são reais, mas como, ainda sim, ele se perpetua e causa tanto estrago, fazendo-nos duvidar, inclusive, do merecimento da nossa existência, já que, aparentemente, não ter um corpo magro nos tornaria indignos, inclusive, de habitar o mesmo mundo das pessoas supostamente esforçadas - ou doentes. 

Importante dizer que, se for doente e magro, tudo bem, a preocupação da saúde é só se a pessoa for gorda (contém ironia). 

“Temos estudos no Brasil que chamam de lipofobia, ou seja, o medo da gordura, o medo de engordar e precisamos entender que os maiores responsáveis por divulgações de peso, tecido adiposo, saúde e longevidade são os profissionais da área da saúde. Esse discurso surge falhando, pois ao tentar alertar, cria-se o estigma, rotulando a pessoa gorda com bases não reais”, destaca. 

Ele aponta que uma das falhas da narrativa médica e do campo da saúde está em acreditar que pessoas que fazem dieta e atividade física, automaticamente, ficarão magras e as que não fazem, ficarão gordas. 





“Evidentemente, percebemos que nem todas as pessoas têm os mesmos resultados e nos discursos de peso, essa crença permanece, de que basta se esforçar e você consegue. 

A partir daí, começa todo movimento questionando se a falha está na pessoa ou no processo? Todas as pessoas vão ter o mesmo tamanho de corpo se comerem igual? Óbvio que não, até porque tudo deve ser individualizado”, explica Cuzziol. 

Conforme ele explica, nesse contexto, reside um grande problema: quase nunca se estudou a genética dos corpos gordos, com isso, não existem, atualmente,  exames, avaliações e mecanismos de realizar estudos, de forma prática e eficaz, sobre o desempenho do corpo, não sendo possível responder questões como: e a pessoa que não consegue emagrecer, o que vai ser dela?  Ela pode viver estando gorda? 

A ausência de informações combinada à falta de interesse e acomodação profissional da grande maioria dos trabalhadores da saúde leva à crença de que todo mundo deve ser magro e que é uma questão de meritocracia: quanto mais você se esforçar e ficar sem comer, mais rápido terá o corpo ideal. 

Entretanto, como bem lembra Cuzziol, este comportamento nos leva a outras questões: E quem não é magro, o que vamos fazer com essas pessoas? Qual o melhor resultado que as pessoas que não conseguem se tornar magras vão ter?

A falta de estudos na área que faz com que as pessoas acreditam que se se esforçarem o suficiente, senão magras, o que as leva a comer cada vez menos, gerando transtornos.





 “Se falarmos hoje para profissionais de saúde sobre pessoas gordas com anorexia, muitos vão achar um absurdo, já que poucos entendem que transtornos desse tipo podem acontecer com qualquer tipo de corpo. Estes profissionais têm informações sobre transtornos em pessoas gordas que não seja compulsão, comer noturno ou comer transtornado? Pessoas gordas podem ter transtornos alimentares, mas o estigma não permite que se avalie com eficácia, pois acredita-se que só ocorrem transtornos que aumentam o peso e não é a realidade”, esclarece. 

Ainda conforme o nutricionista, a anorexia só é enxergada quando a pessoa está visivelmente magra, numa fase aguda do problema, mas, muitas vezes, o transtorno pode estar em corpos gordos e aparentemente saudáveis. Para ele, o bullying e a negligência cometidos contra pessoas gordas são propulsores de transtornos alimentares, já que, muitas vezes, impedidas de acessarem tratamentos para problemas outros de saúde, são forçadas ao emagrecimento como única opção. 

“Se a pessoa gorda vai ao médico com dor na perna, é dito a ela que ela não terá acesso a tratamentos, a menos que ela emagreça. Ou seja, não entregam informações e orientações, mas estigma. As pessoas só acessam a saúde se forem magras e essa é uma realidade”, pontua. 





Todo emagrecimento é sucesso?

(foto: Thito Fonseca/Divulgação)

Não é novidade para ninguém que pessoas gordas são lidas socialmente como preguiçosas, incompetentes, porcas, nojentas, pouco atraentes e (insira aqui seu adjetivo pejorativo), enquanto as magras são lidas como pessoas disciplinadas o suficiente para alcançarem o corpo padrão/desejado. 

Numa sociedade que supervaloriza a obediência e a disciplina, não se questionar o motivo do que quer que seja, até mesmo disso, é praxe, o que, claro, dá brechas para os já conhecidos transtornos. 

Mas, nossa função aqui é questionar, então, lá vamos nós. “Todo emagrecimento é sucesso”? 

Erick Cuzziol garante que não. “Nós sabemos que quanto maior a pessoa for, maior será o estigma que ela vai enfrentar e, socialmente, ela será condicionada a emagrecer a qualquer custo, mesmo sem orientações, com a responsabilidade de encontrar uma ‘solução’ para a questão do tamanho do corpo, o que muitas vezes passar por acesso ao sistema de saúde, a nutricionista, ao dinheiro, etc”, diz. 





De acordo com ele, muitos pacientes são impedidos de acessarem outros tratamentos para outros problemas de saúde caso não emagreçam. Isso, somado às filas e demora para marcação de cirurgias levam a comportamentos que desencadeiam também os transtornos. “Se o paciente é informado que precisa perder 40kg para fazer uma cirurgia na perna e a fila para ele ser atendido demora, ele vai buscar produtos e formas para isso que não são bem fiscalizados, por exemplo”. 

Estes comportamentos podem desencadear distúrbios, que passam pela pessoa enxergar o corpo maior do que é. “Estamos falando de pessoas que não encontram qualquer amparo se o que lhes é vendido é que ‘se você emagrecer, terá sucesso’. Mas todo emagrecimento é sucesso?”, questiona. 

Quando a pessoa emagrece, segundo o profissional, nem sempre ela está perdendo peso da forma correta. Muitas vezes, pode estar perdendo líquido, músculo, o que pode desencadear outros transtornos ou mesmo problemas de saúde mais graves do que o Índice de Massa Corpórea (IMC) alto. 





“Se a pessoa possui um transtorno e busca meios contraindicados para emagrecer, ela se coloca em risco. Pode até abaixar o peso, mas não é o que se deseja em termos de um corpo saudável”, considera. 

Quem está sofrendo pode oprimir?

Psicanalista Gabi Menezes (foto: Divulgação)
 
Para contribuir também pra gente entender mais sobre os transtornos alimentares x gordofobia, convidei a psicanalista Gabi Menezes, especializada em transtornos alimentares, para explicar um pouco como, psiquicamente, isso ocorre. 

De acordo com ela, é preciso entender que a gordofobia é uma opressão estrutural, ou seja, está enraizada na nossa estrutura social e, inevitavelmente, vamos esbarrar nela em alguma ponta, seja oprimindo, seja sendo oprimides. E, como em toda opressão, há sofrimento. 





No caso das pessoas com transtornos alimentares ou de imagem, na maioria dos casos, a questão ganha contornos na infância, tornando-se um sintoma a ser trabalhado na vida adulta. Assim, é possível que pessoas com transtornos alimentares realmente tenham medo de engordar e sofram com isso. 

“Eu gosto de pensar que, patologicamente, se uma pessoa, suponhamos, tenha medo de ser perseguida, isso vai gerar nela um transtorno e esse transtorno vai produzir uma angústia e um sofrimento muito grandes, já que ela vai estar constantemente lidando com o medo. Assim, uma pessoa que tem transtornos alimentares, se colocarmos neste mesmo lugar, ela terá dificuldades de olhar o corpo de maneira diferente e isso ai produzir um sofrimento muito grande, resultando em desespero no caso de aumentar 1kg ou 2kg na balança e sintomas físicos, como indução ao vômito, compensação de comida, purgação, entre outros, o que é bastante sofrido”, explica.

No entanto, ela destaca que é preciso reconhecer que ainda que seja uma patologia e necessite de cuidados, escuta e atenção, não deixa de ser uma patologia opressiva, ou gordofóbica, neste caso. 





“Não podemos ignorar o sofrimento da pessoa que tem o transtorno. Ela sofre com a própria imagem, com dismorfia, então, precisamos pensar que para ela, é muito horrível, mas, também é necessário considerar que essa é uma indução da sociedade, que pressiona para que isso aconteça, para que corpos gordos sejam considerados horríveis, o que leva os pacientes a uma aversão por corpos gordos”, diz. 

Ainda de acordo com a psicanalista, os transtornos podem, na maioria das vezes, começar na infância e se encaminhar para algo maior na adolescência e vida adulta, desembocando em um sofrimento físico e psíquico contínuos. “Estes pacientes usam vários mecanismos, inclusive procedimentos estéticos e invasivos em busca da magreza, que é forjada pela sociedade gordofóbica. Normalmente, vemos pessoas que reproduzem justamente o que sofrem, entendendo que o único corpo válido é o magro. Na clínica, tento voltar muito pra isso e entender onde esse sentimento tem origem, já que muitos pacientes sabem que não é adequado que sintam aversão por corpos gordos, mas têm uma dificuldade imensa em se livrar do sentimento que causa esse sofrimento”, conta. 

Da minha parte, sinto que é preciso que transtornos sejam tratados. Assim como corpos gordos. No entanto, o que observamos é que, socialmente, transtornos são validados como condições de sofrimento, enquanto opressão contra corpos gordos, não. Já falamos aqui, inclusive, sobre a crueldade que é quase um fetiche contra os corpos gordos. Há um sentimento/desejo/dever de punição da sociedade para com estes corpos, o que não acontece em relação a quem nos oprime. 





Dito isso, reforço que não invalido ou tenho qualquer coisa contra quem sofre transtornos, mas acho importante ressaltar que o uso desta carta como validação de um preconceito é cruel e perverso, sobretudo contra corpos que já não desfrutam dos direitos básicos como os corpos magros e padronizados. Não podemos ter a nossa dissidência punida, inclusive, psiquicamente, para que outras pessoas gozem de seus sintomas. 

Quanto ao pavor, eu tenho um só: ser a pessoa que está do lado de quem oprime. Encerro chamando meu amigo - e mestre, Sérgio Vaz. Daqui, seguimos. “Punhos erguidos e um sorriso no rosto porque a luta não para”. 

audima