Eu não tô cansada das redes sociais. Eu tô exausta - ah lá, lá vem ela de novo, falando que não aguenta mais - e não sei como romper o ciclo.
“Vem aqui em casa
Abre uma cerveja
Me conta de você”
Ryane Leão no Twitter. É de um poema do “tudo nela brilha e queima”, mas já foi lambe-lambe impresso e colado nas ruas de SP.
Ontem esbarrei com essa frase da E sempre mexeu comigo. Pela simplicidade desse desejo.
Abrir uma cerveja, falar e, sobretudo, ouvir.
Há quanto tempo você não faz isso?
Mas fazer de verdade! Sentar na casa de alguém com quem se tenha intimidade - tanta que te convida pra casa e não pra um bar - e falar sobre você?!
Fiquei pensando com quem eu gostaria/poderia fazer isso e o que eu contaria.
Possivelmente, o que conto aqui nessa coluna: que tô exausta, que tô de luto, que sinto saudade, que não queria que nossos corpos precisassem lutar pra existir.
'Vem aqui em casa Abre uma cerveja Me conta de você'
Ryane Leão
Aliás, às vezes, eu só queria existir nessa simplicidade: um encontro, uma cerveja e coisas como a minha fé, o último disco que ouvi inteira e me arrepiou, o sonho dessa madrugada, meu cheiro favorito, o que não me sai da cabeça, o que me preocupa, a luz que invadia tudo, os sinais que vejo por aí, como me sinto patética, o último livro que me emocionou, meu cachorro já idoso, minha obsessão por um caderno de capa preta perdido por aí, minha receita nova de risoto. O que me arrepia a pele, o que te da medo, pra onde eu fugiria e no que eu pensaria, o podcast de ficção que tô ouvindo, a sensação que tive ao sair sem máscara pela primeira vez.
Elenquei isso e percebi: qual foi a última vez que falei dessas coisas? Qual foi a última vez que ouvi dessas coisas?
Assim, sem roteiro, sem a necessidade de lutar pra existir. Qual foi a última vez que você sentou numa mesa pra beber com alguém e não precisou militar?
Quero menos textão e mais encontro. Menos tempo nas timelines e mais olhando no olho, segurando as mãos, dançando no meio da sala. Quero menos tempo sabendo qual a hashtag da vez no Twitter e mais tempo dançando Baiana System na sala. Quero contar que descobri uma flor nova no quintal, falar das minhas saudades, de quem eu tenho lido, das memórias que escolho cultivar e não quero discutir política, defender ou acusar chapa, dizer que meu corpo não cabe nos espaços e essa é uma luta continua e exaustiva.
Quero que você me diga, mais, na minha cara, o quanto me admira, o quanto não gosta de algo em mim e menos comentários nas minhas fotos nas redes. Quero viver a vida real, analógica. Por uma noite?! Será que rola?
Quero contar sobre meus afetos sem precisar dizer que é necessário me forjar de mil maneiras pra que eles existam, já que a corpos como o meu, isso sempre é negado.
Quero te dizer que chorei ao vivo, num show do Racionais, que chorei a primeira vez que fui a Salvador. Quero te dizer que amo acarajé, que odeio o frio, que roubaram minha bicicleta, que não acredito mais em signos, que já tive sonhos premonitórios, que dias quentes me excitam.
Quero te contar da primeira vez que li “O mahabaratta”, do meu primeiro emprego numa livraria. Quero te fazer provar minhas bebidas favoritas, pra terminar dizendo que gosto mesmo é de cerveja em copo americano e chão de casa que me acolhe.
Não quero falar só das lutas, mas, do dia a dia, olhando no olho: a saudade do rap no meio da tarde, de um sorvete de manga, das cores de uma cidade quando o sol se põe, do brilho que ficava nos dentes de alguém especial depois quebrou fazia uma piada, do meu processo de escrever e fazer bolo.
Quero dizer do dia que picharam meu muro, de quando eu vi uma roda de break a primeira vez. Quero te contar das viagens que já fiz. De como eu era na escola. Quero falar que tenho medo de estátuas, que sonhei com um anão e que matei uma lagartixa. Quero não fazer sentido, não ter lógica, coerência. Quero dizer que choro toda vez que escuto a música que o Puffy Daddy fez pro BIG. Quero te falar da “minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos”.
Quero abrir uma - ou muitas cervejas - e falar sobre mim. E também ouvir isso tudo de você. Sem que você tenha que me dizer seu partido, como você escolhe suas lutas sociais. Quero estar numa conversa em que as palavras machismo e feminismo não precisem ser ditas, tal qual esquerda e direita. Quero dizer que choro lendo e ouvindo Matilde Campilho, quero contar o nome dos meus orixás e saber dos seus. Quero lembrar que eu já fui viciada na novela Vamp na infância, que eu gosto de mitologia indiana, que já cortei o pulso fazendo pastel.
Quero ter a intimidade e o desejo necessários de ser eu mesma: reclamar do vizinho barulhento, por uma playlist que não seja hype, não faça sentido, mas emocione. Quero fazer meu próprio Carnaval numa noite de terça-feira, sem precisar performar, lutar pra caber, tirar foto e por no insta, dizer quantos seguidores eu tenho.
Quero, nem que seja por um encontro, ser a pessoa comum que eu sou.
E, se fizer sentido pra você que me lê:
“Vem aqui em casa
Abre uma cerveja
Me conta de você”
Ou me chama pra sua!
Vamos celebrar a simplicidade olho no olho enquanto é tempo.