Jornal Estado de Minas

CORPO TERRITÓRIO

A bailarina que não dancei


 
Esse é um texto sobre a bailarina que não dancei. A bailarina que sonhei, mas não pude ser. Eu devia ter uns quatro anos e uma amiguinha que fazia balé. Na época que meu corpo costumava ser meu, ao tentar acompanhar alguns passos, caí. A culpa, claro, recaiu sobre meu corpo rechonchudo. Só descobri, na vida adulta: eu tinha uma barra óssea nos pés, o que os fazia serem chatos. Não conseguiria, nessa vida, me equilibrar e rodopiar. Hoje, escrevo para essa bailarina. 





Isso. E mais algumas coisas, como a insistência em fazer teatro aos 15 anos e a desistência de subir nos palcos aos 17 anos marcaram minha existência nestes territórios negados aos corpos gordos. 

Como toda opressão estrutural, a gordofobia dispõe de tantos tentáculos e formas sutis de regular nossa existência que só me dei conta disso pelo menos uns 18 anos depois, quando, numa mesa sobre literatura e corpos, me perguntaram sobre a gordofobia enfrentada no mercado e editorial e eu me dei conta que ela é exatamente igual a toda gordofobia, mas que, até ali, eu tinha dado um jeito de, através do jornalismo e da escrita, fazer meu nome chegar antes do meu corpo nos espaços. 

Isso me custou o sonho de ser bailarina de saia de tutu e sapatilha rosa na infância. Me custou o sonho de ser atriz de teatro. E me rendeu muitas horas escrevendo e dando vida às minhas neuroses e recalques todos através da palavra. 





Só percebi, aos 35 anos, que ali, naquele momento, eu fazia o esforço de chegar com corpo e palavra ao mesmo tempo nos espaços. E que tarefa difícil essa de cavar territórios para conseguir existir. 
 
Jéssica Balbino na mesa de debate sobre corpos dissidentes (foto: Juca Ferreira/Divulgação)
 
 
Por isso, tô fazendo esse texto: para celebrar o território da palavra criado pelo Festival Literário e Cultural de Itu (Flic) durante o último final de semana em Itu (SP). Como consultora da festa, trabalhei por alguns meses numa equipe reduzida e sem qualquer investimento/patrocínio para botar de pé o sonho do jornalista e escritor Paulo Stucchi: uma festa literária nas ruas de Itu. 

Durante quatro dias, este corpo- território foi pura emoção, chororô e vibração de vida na Praça do Carmo, no centro de Itu, por comungar da palavra e, sobretudo, estar vivo. Há um ano, no auge da segunda onda da pandemia, imaginei que morreríamos todos de descaso do governo. Sem vacina, sem oxigênio, sem capacidade de imaginar amanhãs. Chegamos até aqui, então celebremos: o SUS, a vacina, a ciência e nossos mortos, que não conseguiram chegar conosco. 





Atravessamos, de alguma forma - não sem prejuízo e dores - o período mais tenebroso desse tempo que nos tirou tanto, mas num esforço de projetar possibilidades poéticas, colocamos (e aqui agradeço quem não mediu esforços para isso Fernanda Vaz Rabello, Ana Squilanti, Raquel Aranha e Bárbara Schreurs - além do Paulo Stucchi, já citado) de pé um festival literário neste Brasil. 

Sem traquejo social, tanto quanto sem equilíbrio pra bailarina que não dancei, não sei como voltar aos eventos: cumprimento de longe? abraço? beijo no rosto? tiro a máscara? coloco a máscara? onde lavo a mão? e se eu cansar de estar entre tanta gente? e se eu precisar de um momento sozinha? como que faz a mala pra passar tantos dias fora de casa? e se eu esquecer as calcinhas? e se eu voltar a ser só aquela criança de 4 anos impedida de dançar? e se eu quiser subir no palco e interpretar uma personagem e achar que não posso por ser gorda? e se todos meus dilemas juvenis saírem debaixo da cama pra me assombrar? convido meus monstros e sombras pra um café ou fujo deles?

A pandemia me bagunçou. Mas existe uma certeza: não me roubou o desejo da mudança através da literatura. Mentalmente, me agarro à frase: “minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”. Assim, mergulho em quem fui pra ser quem me tornei e, na profundidade das minhas raízes, me reencontro. Fujo da mediocridade e da hipocrisia como quem abandona um prédio em chamas e tá tudo ali: a bailarina que não dancei, de mãos  dadas com a menina no final do corredor me assombrando. Elas me encaram e eu procuro a minha fé de 10 anos atrás. 
 
Eduardo Suplicy participou da mesa 'Territórios em 2022: espaços na escrita e fora dela que precisamos ocupar' (foto: Juca Ferreira/Divulgação)

Encontro diante de mim, numa mesa em que sou a mediadora. Ouço Monique Malcher (autora de “Flor de Gume”, vencedora do Jabuti em 2011) e Ana Squilanti descreverem suas personagens, suas escritas e seus lugares no mundo: o do desejo de explorar a complexidade das pessoas - e personagens gordas - em lugares outros que não só o da dor. Ali, reencontro a bailarina que não pude ser. 





Nas palavras de quem precisou escrever para cavar seu lugar no mundo e, finalmente estar no palco, ali, naquela manhã, ao meu lado, existindo, numa luta que, sabemos, é pra lá de desigual. Já entramos no jogo com o placar à frente. Soterradas pelo que projetam em nossos corpos, temos nossa existência limitada aos quilos julgados excedentes e uma expectativa de uma escrita confessional e pouco elaborada ou sofisticada. 

É preciso que, colando nossos cacos, nos façamos novamente inteiras e consigamos, enfim, dizer do que nos atravessa - nossas dores, sim, mas também nossos prazeres todos. E é só ali, tanto tempo depois de um início cheio de percalços que podemos, enfim, celebrar nossas existências a partir da escrita. 

Numa curadoria que traz uma referência à Semana de Arte Moderna de 1922 e celebra os modernistas, homenageando Pagu e questiona o que seria modernismo hoje, temas como memória e território também reverberam em nossos corpos - a maioria deles, dissidentes - através das narrativas que contamos. 




 
Jéssica Balbino se apresenta no Festival Literário e Cultural de Itu (Flic) durante o último final de semana em Itu (foto: Juca Ferreira/Divulgação)
 
Como nos lembrou Mayra Sigwalt em sua fala na mesa “Territórios em 2022: espaços na escrita e fora dela que precisamos ocupar”, que fez ao lado de Eduardo Suplicy, Caco Pontes e Maria Carolina Casati: “Ser originário é ser indígena. Quero tirar a ideia do indígena de 1500, como se Itu, hoje, não fosse uma palavra indígena”. E assim, assinala o que acredita ser moderno em 2022. Tanto quanto a estética impressa por Caco Pontes e Suplicy ao entoarem versos da música “O homem na estrada” (cá estou, novamente, citando Racionais MCs) numa base lo-fi e hipnotizando o público - pro delírio feliz do Paulo Stucchi que queria esse momento. 

Ao meu lado, Alexandre Ribeiro também nos lembra que ser modernista é ser periférico e criar a partir da total impossibilidade. Imaginar a poética a partir do luto, das perdas, das dores e assim, criar possibilidades e futuros. É o que ele narra em “Reservado”, seu primeiro romance. 

E, nessa linha, tal qual Pagu - nossa homenageada - Clara Averbuck e Renata Corrêa nos trazem um olhar sobre a raiva e a criação, usando esta como combustível para a própria escrita, em um jeito de organizar a raiva e celebrar a alegria, a partir do nosso próprio corpo, que pode ser festa, felicidade, prazer, desejo e não só o uma demanda política. 





Assim, o último dia do festival não é o fim, mas o começo de uma revolução que começa com nossos corpos celebrando, enfim - e novamente - a vida: os abraços, os encontros, as cervejas nos cantos, a cachacinha pra livrar o fim, os flertes, os atravessamentos pela literatura, pela arte, as lágrimas que insistem em chegar, nos lembrando que perdemos tanto, tanto, tanto, mas que, de algum modo, ainda temos a capacidade de nos sentirmos vivos e de fazermos algo com isso. E que tal uma revolução? 

A mim, interessa a que começa nos livros e nos sonhos. A Flic começou bem. Paulo, Nanda, Ana, Raquel e Babby: vocês sabem o quanto eu curti e tô chorosa com tudo. Obrigada pela partilha do sonho e da realização. Que nossas presenças sigam enchendo praças. 
 
Ao final, ou começo, como queiram, me encontro com a bailarina que não pude ser. A tiro pela mão e rodopio, finalmente, praça afora. Sem tutu, sem laço, sem sapatilha, mas absolutamente feliz: encontrei, na escrita, meu balé perfeito. Minha dança se deu através das minhas palavras. Finalmente, meu corpo chegou junto com a minha escrita e eu pude, enfim, dançar. Livre.