Jornal Estado de Minas

'Precisamos normalizar o fim da norma'


 
“Precisamos normalizar tal coisa (...)”. Dia após dia, tuíte após tuíte, esbarro em frases como essa, aos montes, por aí. E, há algum tempo, tem me deixado exausta e me colocado para pensar, inclusive, sobre as questões relacionadas aos nossos corpos dissidentes. A quem interessa normalizar as coisas e os corpos? 

A normatividade é a prisão dos dias atuais. Passamos anos, quiçá uma vida inteira, buscando jeitos de ingressar numa caixa que não nos cabe - seja por sermos grandes demais, gordos demais, viados demais, lésbicas demais, disruptivos demais - pra caber nesses lugares já pré-reservados, acordados, dentro da norma. 





A normatividade é a moeda de troca dos dias atuais. Só é possível fazer transações - e existir - dentro dela. Qualquer passo fora e, voilà, você não é mais desejado, bem quisto, humanizado. 

Contudo, venho me questionando: pra que tanto esforço em caber num lugar que é tão violento? Pra que tanto empenho de pertencimento a um espaço que nos nega uma vida inteira?

Assim, penso que recusar a norma é contrariar o que está posto. É parar de buscar, via de regra, o que chamamos de “aceitação”. Ser aceito por quem? E pra quê?

No texto “Clube de Admissão”, da poeta argentina Checa Kadener, uma mulher gorda, ela critica, duramente, a normatividade, revelando que nunca entrou inteiramente nela. “A normatividade é evidente assim, passeia todos os dias diante dos nossos narizes, nos olha com raiva, nos pede coisas que nunca quisemos dar, e nos castiga, pela dúvida de que podemos não cumprir suas regras.
 
Muitas vezes pensei em desautorizá-la, tacar fogo no clube, inclusive cuspi na sua porta, mas nada disso faz sentido enquanto continuamos rasgando nossas vestimentas para poder fazer parte dela. E então pedimos a inclusão, pedimos que ampliem os requisitos de entrada, para que não fiquemos de fora, para celebrar o auge de pertencer”. 





Do lado de cá, me identifico e, cada dia mais, me recuso a pertencer a normatividade, tomando ojeriza aos dizeres “precisamos normalizar tal coisa”. Não. Não precisamos normalizar, precisamos quebrar com a cadeia da normatividade. E quando digo cadeia, penso mesmo em prisão, afinal, tudo que é normativo: a sexualidade, os corpos, os comportamentos, são pequenas prisões em que a moeda é se adequar. 

A normatividade não permite desobediência, surpresa, diversidade. Por isso, não precisamos normalizar nada. Precisamos é como nos diz um amigo querido, Thássio Ferreira, “tem é que abolir o conceito de normal, essa aberração”. 

Pois, sim! O conceito de normal é o que beira a aberração. O que encaixota nossos territórios aos que nos colonizam. Não existe nada mais colonial do que o conceito da normatividade, que nos obriga horas em academia, de clareamento dental, genital, de vida. Que nos deixa cada vez mais magros, cada vez mais brancos, cada vez mais sumidos em meio à multidão. 





Nossa beleza - que reside, exclusivamente, no que é único - fica sumida e engolida a cada esforço que fazemos para nos adequarmos às normas. 

Quando olhamos do lado de cá, de fora da norma, nos surpreendemos com o quanto podemos ser livres e, então, criarmos nossos próprios espaços, onde podemos experimentar a vida, nossos corpos, nossa sensualidade, nossos afetos e tudo mais que quisermos em uma perspectiva que é só nossa, sem o atravessamento do olhar do outro. 
 
Jéssica Balbino: 'assim, penso que recusar a norma é contrariar o que está posto' (foto: Lu Alves/Divulgação)
 
Quando então percebemos isso, já não nos interessa pertencer. Tampouco entrar na linha de produção dos corpos normais. Esse pensamento vai ao encontro do que eu disse no texto “A importância do fracasso para que possamos existir”. E quando falo dessa existência, falo, sobretudo de nos misturarmos ao que é normativo. De nos mesclarmos ao que tentam evitar. De sairmos do espaço guetificado ao que nos destinam: os “fora da norma”, os corpos “fora do padrão”. Os corpos “sem lugar”. Os habitantes do “não-lugar”. 

Faço esse texto para que pensemos e entendamos a importância de podermos ter uma existência que não precise, necessariamente ser política e/ou combativa da norma. Não a queremos, mas essa recusa pode ser só uma recusa e não um lugar a ser habitado, pelo qual, novamente, será preciso brigar. 

Que possamos ser nossos corpos dissidentes, não-normativos e que possamos existir, misturando e confundindo as linhas invisíveis que nos separam e desumanizam. Que essa recusa, seja, enfim, uma forma de sermos, apenas. Que possamos, enfim, habitar nossas subjetividades com tudo que nos foi negado, com tudo que negamos. E que, enfim, possamos. 

Gosto de pensar não mais em incendiar a norma - que sim, é uma aberração, bem mais que nossos corpos - mas de apenas confundí-la, com a pluralidade das nossas existências.