Em dado momento da pandemia, comecei a ter sonhos com meus monstros. Todos eles. Ora era com uma cobra que ia crescendo até se tornar absurdamente gigante. Ora era com duas cobras sob meus pés e eu sem poder pisar o chão. Vez ou outra, com lagartixas, esses bichinhos que podem ser simpáticos, mas me aterrorizam sabe-se lá por qual detalhe.
Não bastasse, comecei a sonhar, bastante, com lendas urbanas. Sim, as famigeradas histórias que na infância e adolescência me aterrorizavam voltaram, com tudo, oniricamente, como a menina morta no final do corredor de um hospital. Ela começou a me aparecer e me perseguir nos sonhos em hotéis, quartos de hotéis e quaisquer lugares onde desse pra estar.
Não raro, comecei a sonhar também com a loira do banheiro. Sim, ela. Uma das mais famosas aparições dos anos 1990 estava ali, me assombrando em corredores de escolas.
Cansada de tantos monstros nas imagens oníricas, fiz o que devia ter feito há muito tempo: os convidei para um chá. Botei a mesa bem bonita e cá estamos, entre fofocas e danças as quais os tiro para arriscar uns passos, bailando a vida.
Foi assim também que percebi que não poderia ser a bailarina que gostaria e que falei sobre, aqui nesta coluna. E, mais do que isso: foi assim que entendi que não era uma questão de coragem, ou só de análise. Era uma questão de escrever sobre a monstruosidade. De ouvir a voz do insólito que atravessava meu corpo e transcrevê-la através do que sei fazer de melhor, enfim.
Através deste café com meus fantasmas é que entendi que o maior horror que poderia acontecer com meu corpo já estava acontecendo: ele não só não cabia, como era monstruoso. Imenso. Exagerado. Fora do padrão. Dissidente.
Pra caber, eu precisaria ser normal. E, como já disse aqui, pra mim, aberração é a norma em si e não quem foge dela. Longe de mim querer me diminuir pra caber, logo, me expandi à forma da monstruosidade, assumindo meus fantasmas, meus demônios e tudo que corta meu corpo. Todo horror que eu tentava fugir no sonho era eu mesma, me encarando. A garota no corredor dos hotéis. A loira do banheiro e meu desejo bissexual reprimido. A cobra simbolizando o abuso sofrido na infância (Freud, corre aqui), o silenciamento de anos e anos.
Aliás, todo silêncio deixou de sê-lo a partir do momento que assumi minha voz a partir do meu corpo. Agora, escrevo com ele. Meu jeito de estar no mundo, diferente da bailarina que criou passos para que seu nome chegasse antes do seu corpo, agora chegamos juntos, barulhentos, grandes, gordos. Fazendo estrago, abalando a norma, jogando sal no que está posto e pronto a ser servido.
Meus piores terrores já eram realidade e, quem me mostrou isso foram eles, meus monstros. Por que eu haveria, então, de temê-los? Era chegada a hora de não só me juntar a eles, mas de me reconhecer como tal: a aberração que também temem. Agora sou eu, contando minha própria história.
Como nos lembra Paul Preciado no texto “Eu sou o monstro que vos fala”:
“Eu sou o monstro que vos fala. O monstro que vocês construíram com seus discursos e suas práticas clínicas. Eu sou o monstro que se levanta do divã e fala, não como paciente, mas como cidadão, como seu monstruoso igual”.
Cito Preciado, mas poderia ser Carmem Maria Machado, poderia ser Marian Enriquez, poderia ser Maria Fernanda Ampuero, poderia ser Monique Malcher. Poderiam ser todas estas mulheres, latinas, que escrevem sobre monstruosidades, corpos desfeitos, dilacerados, famintos, aberrações.
No divã que pude visitar e conversar, sobretudo, com estes monstros. Que pude criar uma narrativa pra eles. Que, através da palavra, me fiz monstruosa também. Foi nesse balé, nada clássico e bastante dissidente que consegui, enfim, dançar. Nessa dança de ser quem sou, pela palavra, pela escrita, pelo jornalismo, pela autoficção, pela exposição das pessoas nessa coluna.
E é através dessa monstruosidade, que se evidencia na palavra, no discurso, na escrita - também no divã, que se nega, mais uma vez, o lugar da norma, o lugar da conciliação com quem nos monstrualiza. É, desta nova perspectiva de existência - e de aceitação do bizarro, do insólito, do horror, como parte do que somos e do nosso corpo, que os medos deixam de parar no ar e passam a caminhar de mãos dadas, tal qual os fantasmas.
É só, neste ato, que é possível, de fato, atravessar os fantasmas. Fazer festa com eles. Entender que eles são parte do somos, tal qual nossa escrita fora da academia, da norma, do que cabe numa coluna, do que cabe numa sociedade inteira.
Por isso, criei um curso para falar da “escrita da monstruosidade: o corpo como voz e autoficção”. Ali, quero discutir o quanto do nosso corpo é memória, o quanto é ficção, o quanto é monstruosidade se manifestando livremente.
E é, pro futuro, que quero acreditar nessa monstruosidade. Nessa nossa capacidade de bailar com nossos fantasmas. De criar realidades onde é possível ser tudo que somos e usar nossas vozes - outrora silenciadas - pra dizer de tudo que nos monstrualiza. Ser monstruosa e poder escrever disso é, enfim, ser livre. Vem comigo atravessar fantasmas, vem!