Amanhã completo um ano com esta coluna aqui no DiversEM. Lá se vai uma volta ao redor do sol falando sobre corpos, literatura e diversidade por aqui. Uso, então, o espaço para celebrar e agradecer quem me lê. Sem vocês, não faria sentido. Obrigada a quem luta e celebra comigo.
E, assim como quando comecei, quero estar cheia de positividade e notícias boas, mas, o mundo - e nosso país - não têm sido nada generoso conosco - apesar de alguns avanços em algumas pautas. Queria que hoje fosse uma coluna só feliz, que este fosse um espaço em que eu pudesse fazer piadas e usar de ironia, apenas. Mas, ainda não é possível. Faço uso do espaço sempre “com minha melhor raiva e com todo meu amor”, oscilando entre os motivos que temos para comemorar e os que temos para nos indignar.
Faço uso do espaço sempre 'com minha melhor raiva e com todo meu amor', oscilando entre os motivos que temos para comemorar e os que temos para nos indignar.
Nesta semana, podemos ficar felizes. Somamos, com este, 54 textos publicados. Não é todo dia que uma mulher gorda e periférica celebra um ano de coluna num jornal de circulação nacional. Dito isso, nesta semana, recebi uma mensagem de uma leitora argentina. De algum jeito, os textos chegam para ela que, com algumas aulas de português e o auxílio de um tradutor, espalha por aí a coluna e o quanto gosta e se identifica com ela.
Também nesta semana a coluna foi citada em um artigo acadêmico. O primeiro texto “Estão tentando sumir com os corpos gordos e somos cúmplices disso” é mencionado no trabalho “Do dispositivo para emagrecer à Máscara de Flandres: mídia, gordofobia e resistência”, escrito por Néliane Catarina Simioni, na Unicamp.
Esta coluna foi também, muitas vezes, citadas em outros trabalhos acadêmicos, em outros artigos de diferentes sites e, mais do que isso, foi objeto de pensamento e estudo. Fomentou discussões e cumpriu o papel que pensei inicialmente: debater a pluralidade de corpos, a diversidade subjetiva das nossas existências, que aqui e agora da literatura que nos atravessa.
Neste um ano, vocês acompanharam não só o que rolou no mundo e nas questões antigordofobia e da literatura neste tema, mas também na minha vida pessoal. Todo mundo sabe que uso também esta coluna de divã e mais: de lavação de roupa suja e acerto de contas com tudo aquilo que me provoca de diferentes maneiras.
Por aqui teve luto pelo analista que morreu precocemente - e eu ainda tento catar meus pedaços e fazer algo com o que estou, verdade seja dita. Teve resenha de livros, de séries com personagens gordas, teve desabafo, teve jeito de ousar pensar em formas outras de existir no mundo: sem norma e com o fracasso.
Saber que minha voz tem ecoado ao invés de ser silenciada é minha parte de amor nesta trajetória que requer resiliência, muita paciência e disposição. É meu jeito de seguir existindo. Minha vez de agradecer. Exerço, neste um ano, a gratidão pelas colunas lidas, por fazerem aqui, valer o que digo. O pensamento que crio. Minha intelectualidade gorda. Obrigada por me fazerem continuar desejando e existindo.
Um ano depois e a luta continua
Hoje, um ano depois, lamento pelas lutas que ainda temos que travar. Na semana passada, questionei se “Seu orgulho LGBTQIA+ inclui pessoas gordas?” e ontem (28/06), no Dia do Orgulho LGBTQIA , a Câmara Municipal de Poços de Caldas, no Sul de Minas, votou o projeto de lei que dispõe sobre a adoção e utilização do nome social por parte de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública direta, autárquica e fundacional do município de Poços de Caldas e dá outras providências.
Por oito votos contrários e seis favoráveis, os vereadores da casa arquivaram o projeto de autoria de Diney Lenon (PT), que tinha parecer pela aprovação da Comissão de Constituição e Justiça. Veja bem, a reprovação do projeto aconteceu justamente no Dia do Orgulho LGBTQIA , o que foi considerado por militantes como um duro golpe na luta contra a transfobia em Poços de Caldas.
Votaram favoráveis ao projeto, além de Diney, os vereadores Luzia Martins (PDT), Regina Cioffi (PP), Tiago Braz (Rede), Lucas Arruda (Rede) e Douglas Dofu (União). Votaram contrário ao projeto os vereadores Flávio Togni de Lima e Silva (PSDB), Claudiney Marques (PSDB), Ricardo Sabino (PSDB), Wellington Paulista (União), Wilson Silva (União), Roberto Santos (PRB), Kleber Silva (Rede) e Silvio Assis (MDB). O presidente Marcelo Heitor (PSC) não precisou votar.
Lamentável, pra dizer o mínimo. E assim, a cidade lindíssima - e ultraconservadora - que vivo se consolida, numa data tão importante, com um legislativo absurdamente contrário à minha existência e ao mínimo de respeito às pessoas trans e travestis nos espaços públicos do município.
Mas, se por um lado essa derrota do projeto me dá raiva, por outro, me faz pensar em como nossas existências são urgentes e em como nossa construção - ainda que no misto da raiva com o amor - são essenciais.
Corpos ameaçados
Há um ano eu falei sobre estarem tentando sumir com nossos corpos e nossa cumplicidade diante disso. Discorri, em inúmeras colunas, sobre os métodos de extermínio dos corpos gordos, dos mais sutis aos mais violentos. Falei, de diferentes formas - e foram muitas - sobre a anulação das subjetividades, mas nada me fez pensar em viver a semana que passamos, em que uma garota de 11 anos, vítima de um estupro, foi impedida pela justiça de fazer um abordo legal. Em que, na mesma semana, uma jovem de 21 anos teve sua vida exposta após, ser vítima de um estupro, doar o bebê, de forma legal, para adoção.
Nesta mesma semana, os EUA voltaram a proibir o aborto legal e seguro, deixando uma sombra de medo em muitos outros países. O mesmo ocorre diante da notícia de que aplicativos de monitoramento da menstruação podem usar os dados das usuárias para coibir práticas contraceptivas e também o aborto legal.
Esta foi também a semana que uma mulher denunciou um rapper bastante famoso por abuso sexual, me fazendo reviver uma história pessoal triste de abuso em que todo sistema: patriarcal, Ministério Público, etc. operaram pelo silenciamento.
O cenário que mais lembra o ficcional Gilead, do livro “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood é desesperador para mulheres e pessoas com útero no nosso país. A regulação não é e nunca foi sobre a vida, mas sobre o controle das nossas existências e corpos.
Em tempo, vemos um massacre ocorrer contra povos indígenas. Vemos pessoas pretas e periféricas morrendo diariamente. Vemos a política do extermínio e da morte tomar conta da nossa vida, seja através da falta de gestão da pandemia, seja através da fome, seja através dos discursos de morte, seja do fortalecimento da liberação dos impostos sobre as armas, dos agrotóxicos na nossa comida. Nos é roubada, inclusive, a possibilidade de sonhar e imaginar outros futuros possíveis pros nossos corpos.
Me entristece que, no dia que poderíamos estar celebrando o primeiro aniversário da coluna, eu tenha que escrever sobre as ameaças que nos rondam e a tristeza que insiste em tomar conta dos dias: o luto coletivo de um país que sofre e sangra nas mãos de um governo genocida, do fundamentalismo religioso, de uma moralidade que insiste em dizer que corpos de mulheres expostos fortalecem o patriarcado enquanto temos os direitos básicos negados o tempo todo. Foto da raba empodera?
Com o cenário que seria catastrófico se fosse bom, mas é só desesperador mesmo, agradeço a quem me leu durante este primeiro ano nesta coluna. Frente a esse desespero e ao que resta: raiva e amor, pego meus sentimentos e sigo, enfrentando os dias. Uso a escrita como arma para enfrentar meus monstros e me recuso a qualquer forma de diminuição e enquadramento da norma para tentar caber.
Sigo com a caneta e o punho em riste, pronta para enfrentar meus monstros internos e os externos, em punga, diariamente, para seguir escrevendo minha história por aqui e narrando o que nos acontece por aí
Sigo com a caneta e o punho em riste, pronta para enfrentar meus monstros internos e os externos, em punga, diariamente, para seguir escrevendo minha história por aqui e narrando o que nos acontece por aí. Apesar das notícias tristes que tentam nos roubar os bons motivos de celebração, cá estou, insistindo nela. Insistindo no amor. Afinal, se tivermos medo das pequenas alegrias, vamos ter coragem de quê?
E que não nos falte: coragem e alegria pra que sigamos. Pra que nossos corpos permaneçam existindo. Pra que nossa bandeira colorida continue tremulando. Pra que nossas existências façam sentido pra além das ameaças e que a gente possa criar tempos e espaços para nossas alegrias, vidas e conquistas. Novamente, muito obrigada a quem luta comigo.
E que não nos falte: coragem e alegria pra que sigamos. Pra que nossos corpos permaneçam existindo.