É impossível ser mulher/ter útero e estar bem no Brasil hoje. Eu estou nauseada. E não, não é figura de linguagem. Venho escrevendo há pouco mais de um ano sobre a desumanização dos nossos corpos, mas nem a pior fantasia de horror seria capaz de dar conta de uma cena tão desesperadora: uma mulher na sala de parto sendo estuprada pelo médico anestesista.
Se o inferno existe, ele é ser mulher no Brasil de 2022. Não existe pesadelo e/ou imaginação que dê conta da realidade que vivemos. Não existe segurança em espaço algum, a gente já sabe. Mas estupro na sala de parto praticado por um médico? Eu, tão acostumada a ler e escrever sobre o insólito, não seria capaz de pensar em algo tão insólito. Nem na hora de parir a mulher tem paz.
Giovanni Quintella Bezerra, de 32 anos, foi preso em flagrante no Hospital da Mulher (a ironia do nome) em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. De acordo com imagens feitas por funcionárias da unidade, ele teria colocado o pênis na boca da paciente enquanto participava do procedimento e limpado depois. Ela estava sedada no momento.
"Se o inferno existe, ele é ser mulher no Brasil de 2022. Não existe pesadelo e/ou imaginação que dê conta da realidade que vivemos"
A indignação é tanta que sequer nos perguntamos: como está essa mulher? Quanto tempo vai levar para que ela se recupere desse trauma ao qual foi submetida? Quem vai cuidar da saúde mental dela?
Nós, mulheres e pessoas com útero, não nos sentimos seguras em espaço algum. Seja na escola, dentro de casa, na igreja, na balada, nas ruas, no trabalho e agora, em ambientes médicos. Uma mulher em situação de dar à luz deve ser acolhida e bem atendida.
Já somamos inúmeros casos de violência obstétrica no Brasil. Dados da Fiocruz divulgados em 2021 mostram que 45% das mulheres já sofreram violência obstétrica na rede pública e 30% na rede particular.
Já somamos inúmeros casos de violência obstétrica no Brasil. Dados da Fiocruz divulgados em 2021 mostram que 45% das mulheres já sofreram violência obstétrica na rede pública e 30% na rede particular.
Mas não para por aí. Em 2019, o The Intercept fez um levantamento inédito que mostrava 1.734 casos de violência sexual comeditos em instituições de saúde de nove estados brasileiros. O título não poderia ser mais estarrecedor: Licença para estuprar.
No entanto, jamais imaginamos assistir isso - embora eu recomenda, honestamente, que não veja o vídeo do esturpo que circula nas redes sociais e sites noticiosos, é horrível - durante um parto. Momento em que a mulher deve ser bem tratada e não violentada.
O que mais assusta é: o crime foi cometido por um médico. Isso mesmo. O típico cidadão de bem. E ele fez isso NA FRENTE DA EQUIPE. Sim. Com alguns movimentos que tentam ‘disfarçar’ o crime, o anestesista o comete diante de uma equipe na sala de parto.
Não há estômago que aguente a informação de que o médico estuprou a mulher DURANTE o procedimento. Ela estava com a barriga aberta. Enquanto outros dois profissionais mexiam no útero e ela trazia uma vida ao mundo, ele a estuprou.
Não existe rivotril, vonau, frontal, constelação familiar, reiki, themascal, ayahuasca, psicanálise que dê conta de tamanha violência.
A pergunta que fica é: onde mulheres podem existir em paz?
Vi, agora pouco, no Twitter, um pedido para que psicólogos e psicanalistas que são presentes nas redes evitem dar o famoso diagnóstico do médico, já que além de fora da ética profissional, incorre-se o risco de patologizar um homem que cometeu um ato extremo de maldade contra uma mulher vulnerabilizada.
É importante dizer que não é um caso isolado de monstruosidade. Não vai demorar a surgir um laudo alegando questões de saúde mental. O médico não é um monstro. Não é um louco. Não é um ponto fora da curva. Ele é um médico. De jaleco. Que estudou para fazer o que faz. Ele é um homem comum. Ele poderia ser seu marido, seu amigo, seu colega de trabalho. Ele é um homem que, como uma infinidade de outros, estupram mulheres.
"O médico não é um monstro. Não é um louco. Não é um ponto fora da curva. Ele é um médico. De jaleco"
No Brasil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Violência Pública, uma mulher é estuprada a cada 10 minutos. O tempo que você gasta para ler este texto é o suficiente para que uma nova vítima da violência de gênero seja feita. E nem todas entram para a estatística. Só as que conseguem denunciar e provar o crime. Com isso, sabemos que, infelizmente, este número é bem maior.
E é comum. É insano pensar que um médico se sente confortável o suficiente para, durante 10 minutos, estuprar uma mulher em trabalho de parto num hospital - no local de trabalho dele - e acreditar na impunidade. E vale repetir: não se trata de alguém doente. Se trata de um homem comum. Poderia ser meu irmão. Poderia ser alguém com quem já dei match num app de relacionamento. Poderia ser meu amigo.
É este homem comum, que nas redes sociais avisou “Vocês ainda vão ouvir falar de mim” e que jurava adorar o próprio trabalho. Este homem comum usava as próprias redes sociais para mostrar a rotina nos plantões, expor pacientes sedadas e crianças recém-nascidas. No último story que fez antes de ser preso, postou uma foto da própria meia decorada com camarões e escreveu: “É aquele ditado: camarão que dorme, rende mais no plantão”.
Estamos falando deste homem comum que, enquanto a paciente em trabalho de parte estava deitada na maca, insconsciente, abriu o zíper da calça, puxou o pênis pra fora e introduziu na boca da mulher. ENQUANTO A MULHER TINHA UM BEBÊ. Ela foi estuprada inconsciente por um médico enquanto tinha um bebê.
Por 10 minutos a violência foi praticada. E, enquanto a praticava, o médico tentou se movimentar pouco, para que os colegas, separados por uma divisória de pano, não percebessem. A perversidade segue: ao terminar, ele usou um lenço de papel para limpar a boca da mulher grávida, imóvel na maca.
O hospital disse que vai investigar o caso. A polícia disse que vai apurar se há possíveis outras vítimas. Agora, cá pra nós: quem é que acredita que um homem, do nada, num dia, resolve fazer isso? E o faz com tanta tranquilidade, tanta segurança, se nunca fez antes? É evidente que pensemos que não se trata de um caso isolado e/ou que o médico entrou na sala e resolveu estuprar a mulher.
Ainda não vi, mas pode ser que nas próximas horas esbarremos com defesas do médico e culpabilização da mulher. Há quem vá perguntar: mas que roupa ela usava na hora do parto? A fim de tentar justificar a violência absurda. Há ainda quem vá tentar relativizar o vídeo. Dizer que é montagem. Há quem vá usar o precedente do caso da Mari Ferrer, que mesmo com imagens, ela não conseguiu ter seu direito validado pela Justiça brasileira.
Outro vídeo que estarrece é o da prisão em flagrante do médico. No mesmo país em que policiais matam pessoas pretas nas periferias apenas porque elas existem, neste, a delegada calmamente explica todos os direitos do médico e o trata, basicamente, como se ele fosse a vítima. Já estive numa delegacia para comunicar um crime de abuso e não fui, nem de longe, tão bem tratada quanto esse criminoso, que, repito - foi preso em flagrante.
É desesperador sabermos que vivemos sob o risco de sermos estupradas. Não importa onde. Não importa a roupa. Não importa em que condições. E, caso formos estupradas, vão tentar nos desacreditar. E, se engravidarmos, após o estupro, vão tentar impedir o aborto legal de todas as formas (falei sobre isso aqui) e se tivermos o beber, podemos ser estupradas durante o parto. E se alguém não for corajoso o suficiente para peitar o criminoso e gravar, pode ser que nunca saibamos da violência e/ou que nunca acreditem na gente.
E não me venham com a reprodução falida do argumento da castração química. Homens não usam apenas o pênis pra estuprar e em 2022, já devíamos saber disso. Estupros são sobre poder, não sobre libido e/ou pênis. Não ser capaz de ter uma ereção ou de sentir desejo não vai diminuir, em nada, o número de estupros. Tal projeto bolsonarista nada mais é do que tapar o sol com a peneira.
Ser mulher no Brasil é um inferno. Ter um corpo com útero é ver-se ardendo cotidianamente na cumplicidade dos poderes todos - dos homens todos - do sistema de saúde todo - das bancadas evangélicas todas - de jornalistas todos. De um mundo inteiro que banaliza denúncias e violências, de gente que questiona como era a roupa que ela vestia, de gente que critica uma mulher com a bunda de fora rebolando feliz num baile funk, mas fecha os olhos para uma brutalidade desse ou passa pano pro cara, com a máxima “se ele for culpado, que seja julgado e condenado”, eximindo-se então do julgamento outrora praticado contra a vítima.
Há ainda uma parcela que vai dizer: “mas tem que ver o que ela fez pra ele”. Ou “acredito que ela tenha provocado isso”. Mesmo que estejamos falando de uma mulher, imóvel, sedada, sendo submetida a uma cesárea, num hospital que chama-se “Hospital da Mulher”.
Vale citar aqui a coragem que as colegas do médico tiveram em filmar e denunciar. Desejo, de coração, que mais pessoas tenham esse ímpeto ao se depararem com violências tão desumanizantes quanto. Importante dizer que, para polícia, o grupo que fez o vídeo informou que o médico já havia participado de duas outras cirurgias e apresentado comportamento suspeito.
Vale citar aqui a coragem que as colegas do médico tiveram em filmar e denunciar. Desejo, de coração, que mais pessoas tenham esse ímpeto ao se depararem com violências tão desumanizantes quanto. Importante dizer que, para polícia, o grupo que fez o vídeo informou que o médico já havia participado de duas outras cirurgias e apresentado comportamento suspeito.
Precisamos nos questionar quais os caminhos exatos que nos trouxeram até aqui e precisamos saber que, em muitos momentos, fomos cúmplices dele. Nos calamos para as violências, relativizamos. Fingimos que não vimos. E concordamos com a ideia de que nossos corpos não nos pertecem.
Eu poderia dizer que espero que ele responda pelo crime, que prevê, segundo o Código Penal Brasileiro, pena de 8 a 15 anos de prisão, mas não sei se isso é suficiente perto do horror do ato que ele cometeu e do medo que se instala nos nossos corpos apenas por termos úteros. Não sei o que dizer e/ou esperar. É difícil corpo para tanta revolta.
E, por acreditar nisso: nosso corpo não é nosso é que uma série de violências contra nossas existências são cometidas sem que possamos sequer revidar. Sem que estejamos acordadas e lúcidas para ver.
Hoje seria um excelente conto de terror. Um excelente conto distópico. Mas é a realidade: ser mulher no Brasil dói demais.