“Oi. Que dia vamos fuder essa semana?”. Essa foi a mensagem que recebi de um ‘contatinho’ alguns dias após uma transa. Longe de mim ser moralista e tudo mais, mas, quando foi que a gente entendeu que tudo bem tratar as pessoas - sobretudo as que dividimos momentos íntimos - desta forma?
Não, eu não quero um pedido de namoro. Longe de mim, de novo, fazer qualquer tipo de cobrança. Mas, chegando aos 40 anos, eu não só quero, como preciso ser tratada como um ser humano e não um objetal.
Dias depois, a mesma pessoa me mandou, numa segunda-feira , às 22h26: “Oi. Tá sozinha agora? Quer mamar? Agora”. E se espantou por ser ignorada. Fiquei, por muito tempo olhando para a tela do celular e pensando no quão louca eu precisaria estar para ‘mamar’ naquele momento.
Imagina que eu tiraria meu pijama, sairia da frente do computador onde fazia meu home office nos muitos ofícios, para sair de casa e pagar um boquete pra alguém. Alguém que investe nada em mim, exceto mensagens esporádicas muito diretas sobre ‘fuder’ e ‘mamar’.
Novamente, reitero: não espero muita coisa. Mas, que tal ser tratada como uma pessoa? Que tal ser enxergada como alguém que está ali e quer mais do que ouvir sobre as frustrações desse cara que até transa bem, mas é mediano pra menos: emprego meia boca e sem perspectiva de futuro, sempre duro e sem condições de pagar sequer o motel. Sempre ouvindo as músicas que ninguém conhece do Legião Urbana, porque ‘são as melhores’ e tendo que aguentar os planos frustrados de alguém que tem quase 40 anos mas ainda tá preso nos 17.
Logo, sei que não dá pra esperar muito. Mas poxa, será que não dá pra pessoa perguntar como estou e/ou imaginar que, pra eu ter desejo de abandonar minhas pantufas é preciso mais do que uma mensagem me oferecendo uma mamada. Seria preciso despertar meu desejo e esse, puramente sexual, só funciona no dia fértil. E aí, tem que casar o calendário do gato com o meu.
Digo isso, do meu lugar de pessoa, completa, complexa e lotada de subjetividades, mas também do meu lugar de mulher gorda. Sim. Na última semana escrevi sobre “quem paga a conta de quem nunca é convidada para jantar?” e trouxe essas questões sobre sermos, quase sempre, objetos.
Daí, inclusive, vem esta constatação. Quando a mulher é magra, normalmente, o que ela recebe é “vamos sair para jantar?”, quando é gorda, o que ela recebe, via de regra, é: “eu vou te arregaçar”.
Isso é tão constante, sintomático e naturalizado. Sim, é normalizado socialmente tratar mulheres gordas apenas como um lugar para descarregar a tensão sexual. Um pedaço de carne que ‘merece ser arregaçado’. Quase sempre, a expressão vem acompanhada de ‘eu vou te dar o que você merece’. E esse ‘merecimento’ é sempre uma relação sadomasoquista, cuja regra principal é bestializar a pessoa que está ali pra além do que um setting de BDSM jamais sonhou e transformá-la, sexual e subjetivamente em um nada. Em apenas ‘aquela que merece ser arregaçada’. Afinal, ela ousou desobedecer, né?
Como ela pode teimar e existir gorda? Como ela pode, neste corpo imenso, despertar desejos sexuais tão fortes que tornam-se impossíveis de serem contidos, transformando-se numa fantasia punitiva. É preciso punir a mulher que ousou ser desejada, mesmo que o mundo diga que ela sequer pode existir.
O ponto mais doloroso de todos
Curioso é que, no Twitter, comentei sobre esse tema. Uma pessoa respondeu dizendo que quando recebe um ‘vou te arregaçar’ como mensagem, fica feliz. E aí, ela tocou num ponto extremamente doloroso. Muitas vezes, um sexo violento, seguido de pouco ou nenhum carinho ou cuidado, com mensagens como a que eu recebi e abro o texto reproduzindo, são tudo que mulheres como eu: gordas, vão ter de possibilidade e caminho para ‘afeto’.
Na maioria dos casos, uma transa violenta é a única chance que uma mulher cujo corpo não atende aos padrões tem de gozar. Ou de experimentar sexo. Ou de estar com outro corpo que não seja o seu próprio.
E não, não estou tirando isso da minha cabeça. Cada vez que toco no assunto com amigas que também são gordas, recebo relatos tão tristes - ou mais - que os meus. Nesta semana, conversando com a atriz Mônica Rodrigues, ela me disse que perdeu as contas de quantas vezes ouviu o ‘vou te arregaçar’. E que nunca, nunca mesmo, recebeu convites para jantar ou flores.
Isso só confirma a bestialização com que nossos corpos são tratados. E vou além, recebi, via DM, a mensagem de uma amiga que me destroçou. Ela me disse que, para experimentar sexo, contratou um garoto de programa. Foi a única chance que ela teve de ter contato íntimo com alguém. Sendo uma mulher preta e gorda, ela disse que nunca conseguiu namorar e que, sem paciência ou jeito pra apps, investiu no sexo pago.
E sim, saber disso me destroçou. Mas, volto a dizer: longe de mim ser moralista. Eu acho que tudo bem uma mulher pagar pra ter sexo. E tudo bem contratar alguém, etc. O que não está tudo bem é isso ser compulsório. É esta ser a única opção. O que não estpa nada bem é que uma mulher preta e gorda não consiga se relacionar afetivamente com quem quer que seja.
Existe algo muito grave aqui. E é absurdamente doloroso falar sobre. Desde o texto do jantar, não paro de receber mensagens de pessoas, diferentes pessoas, me dizendo sobre como aquele relato as deixou triste.
Agora, pensem vocês: além de não receber flores e/ou ser chamada pra jantar, quando alguém quer sair comigo, é pra me arregaçar.
E sabe, não é como se eu - ou minhas amigas que trago para este texto - não fosse uma pessoa interessante. Não é como se não tivéssemos sobre o que dizer. Ou como se, no papinho coach social, ‘se a gente se esforçasse mais, tivesse mais autoestima não ligássemos pro que os outros pensam’ esses afetos fossem chegar.
Eu tô falando de solidão. E é uma solidão eterna. É um beco sem saída. Ou a gente se mutila pra deixar de ser quem somos e passamos a ser a única coisa que a sociedade tolera, ou a gente passa a viver a tristeza dos corpos rejeitados e/ou apenas bestializados.
Não, não estou falando de fetiche!
Muito se fala sobre o fetiche das pessoas gordas. Eu mesma já escrevi sobre isso nesta coluna. E é claro que ele atravessa esse texto, afinal, estamos falando de desejos por corpos não padrões e sexo na contemporaneidade.
Porém, penso que está para além disso. No fetiche, pode existir um cuidado e aqui, estou falando apenas de uma relação cujo objetivo é ‘arregaçar’ alguém. É quase parecida com uma ameaça de briga na porta da escola e, por vezes, deixa dúvida se a pessoa quer realmente transar com você ou te bater até você não aguentar mais.
Minha pergunta é: de onde vem esse desejo pela punição das mulheres gordas?
E mais: por que a gente aceita isso?
Estou às voltas comigo mesma há algum tempo pensando: por que raios eu me meto em relações assim? E a resposta eu mesma já dei ali em cima.
Muitas vezes, essas serão as únicas relações possíveis. Essas serão as únicas chances que uma mulher gorda terá de transar com alguém.
E, sabendo - e se beneficiando disso - a sociedade segue reforçando a gordofobia como estilo de vida. É tão mais fácil oprimir um grupo e gratificar outro, não é mesmo?
A gente aceita transar de luz apagada pra que o outro não veja nosso corpo. A gente aceitar ser a outra. A gente aceita convites para sermos arregaçadas e quase agradecemos por ele. A gente aceita transar sem camisinha - e nos expomos a ITS e HIV. A gente aceita qualquer migalha, porque a nós, sempre foi negado tudo.
Aos corpos em que tudo sempre foi negado, acredita-se que vão topar qualquer coisa. Sexo a três, sexo público, sexo sem proteção, sexo sem qualquer demonstração de afeto, sexo sem beijo na boca, sexo punitivo e só. E acreditam que essa repetição será suficiente. E farão exigências: ‘não se depile, faça as unhas e pinte de vermelho, só goze se eu deixar’.
E diante do cenário, estamos, quase sempre, numa posição de submissão, dando margens para os abusos. Para ‘relações’ que não são relações, mas nos dispomos ao uso, na clara tentativa de nos tornamos, quem sabe, um objeto. Nos vemos, então, forçadas a aceitar qualquer imposição: ‘só saio com você se você arrumar uma amiga’, ou ‘só vamos sair se você me deixar te amarrar’, ou ‘só vamos sair pra você me chupar’, entre outras coisas.
Ou aceitamos, ou ficamos sozinhas pra sempre.
A retirada da nossa subjetividade, nos transformando em abjetos faz com que, diante de qualquer oferta que nos torne objeto, ainda que mero, aceitemos, afinal, é melhor sermos usadas e arregaçadas, do que seguirmos sendo invisíveis, ainda que imensas.
Mas, será que é melhor mesmo?
E faço esse texto pra refletir em voz alta, no papel, que uso como divã: e se a gente disser não? E se a gente falar sobre? E se a gente mostrar pra sociedade que a gente sabe como esse mecanismo opressor é perverso? E se a gente disser que sabemos como funciona e que percebemos o que está acontecendo? E se a gente começar a se relacionar entre a gente? E se criarmos novas formas de partilha de afeto que não a única conhecida e romântica? E se a gente se recusar a ocupar o olhar de abjeto?
Já escrevi aqui outras vezes neste tom, mas, vale pensar que ‘se eu não posso ser nada, posso ser tudo’. Se eu preciso fazer tantas concessões aqui pra ter momentos de afeto, será que estamos mesmo falando de afeto? ou de abuso? O que eu faço mesmo é sexo ou é abrir mão da minha subjetividade para atender ao desejo do outro?
Dito isso, ficamos refletindo e com o recado: a partir de agora, quer me foder? me beija!