Jéssica Balbino
Da minha tela em branco, penso em como começar essa coluna. Eu poderia, aqui, tentar virar seu voto, mas eu já fiz isso na mais recente - e espero que tenha dado certo. Aliás, espero que todas as tentativas, até a musiquinha chata de ‘vira vira vira voto vira’ estejam dando resultado em prol da democracia e que, nesta guerra de status de WhatsApp, ou zap, como condenamos nossas tias mais velhas de falarem e agora falamos, esteja convertendo eleitores para nos afastarmos da autocracia que nos ameaça, com seu rabo pontudo e seus chifres, baforando no nosso cangote a todo instante.
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Esta é a eleição mais importante das nossas vidasConceição Evaristo é homenageada da Festa Literária da Mantiqueira'Eu vou te arregaçar: quando a única opção de afeto é violência'Estão sumindo os extensores de cinto e ninguém sabe o que está acontecendoMinha carne é de carnaval, meu coração é igualThaís Carla x Nikolas Ferreira: seu corpo, minhas regrasE mata mesmo. Mata de forma ardilosa. Um pouco por dia. Todo dia. Há quatro anos. E ainda que vençamos nas urnas no próximo dia 30, temos que vencer o autoritarismo que ganhou espaço no coração de tanta gente, seja por identificação, através da igreja, através do próprio trabalho ou do WhatsApp e das redes sociais.
Todos nós viramos ‘tias do Zap’ nos últimos dias. Discípulos de Janones ou não, mas, lutando, voto a voto, no espaço que antes estava ali, abandonado. O status. Dali saem stories e mais stories, em foto, vídeo e cards bem elaborados mostrando - praticamente implorando, sejamos sinceros - os motivos pelos quais Bolsonaro não pode ser reeleito.
É gente morrendo por causa da ‘Picanha do Mito’, tal qual a temida Venezuela que tanto evitamos nos tornar e, num domingo de eleição, nos tornamos, ao ver uma pessoa morrer por tentar comprar um pedaço de carne estragada, é o cristianismo sendo atacado, são as mulheres sendo atacadas, o presidente debochando dos mortos por COVI-19, imitando pessoas com falta de ar.
A lista é extensa e vai desde o mais inofensivo meme ao vídeo do presidente afirmando que quase ‘comeu um índio’, só não o fez por falta de apoio e companhia da própria comitiva. Canibalismo com pinceladas de imagens dele, o presidente, atado a um polígrafo - máquina que detecta mentiras - dizendo que praticava sexo com animais.
O verdadeiro Freud, corre aqui é o Brasil. Que se recusa a deitar no divã. Que faz birra para não olhar para os próprios prontos. Que se deixa engolir pelo desejo absoluto de ter um pai.
Nós viramos ‘tias do Zap’ isso causou ainda mais ruptura em 2018, quando bloqueamos todo mundo, xingamos e passamos muitos natais distantes - até a pandemia nos aproximar, ou separar pra sempre, no caso de quem perdeu pessoas pela má gestão do presidente, que arbitrariamente atrasou a compra de vacinas, prevaricou e tentou ganhar 1 dólar a cada dose. É fato que, agora, as brigas estão mais intensas.
Parece um disparate que em 2022, pós-pandemia, quase 700 mil mortos, 33 pessoas passando fome, um presidente que nega e a existência dessas pessoas - enquanto algumas capitais parecem campos de refugiados - que corta 97% do orçamento da educação, quase 50% do da saúde e tudo isso para alimentar o orçamento secreto - a gente ainda tenha que justificar o motivo de um voto que não é nesse projeto de morte e destruição.
No meio dessa justificativa, que atire o primeiro like quem não se irritou, não precisou reclamar no grupo de amigos, na terapia ou bloquear alguém. E, ainda: quem é que não recebeu um áudio descompensado de alguém ameaçando romper a amizade, tirar o nome do testamento, apagar da agenda. Quem é que não foi bloqueado?
Por aqui, meu pai no auge dos 83 anos recebeu uma ligação para informá-lo que eu posto meus nudes na internet. Para os leitores desta coluna, nenhuma novidade: os nudes estão por aqui. E estarão enquanto meu corpo for um corpo ameaçado. Enquanto eu tiver que lutar pra existir. Enquanto eu tiver que lutar pra que outros corpos possam existir: pretos, indígenas, LGBTQIA+, deficientes, gordos, etc.
Minhas fotos estarão por aí, como forma de forjar minha memória, quando inclusive meu corpo já não estiver mais. E estarão para dizer que fui parar em grupo de incel, em grupo de bolsonaristas, que enfrentei ataques aos meus perfis e que isso extrapola, e muito, o que julgamos ser apenas uma guerra digital.
A guerra é real e os tentáculos do fascismo são imensos. Eles nos agarram desprevenidos, num domingo à tarde, em forma de ligação e, na impossibilidade de virarem votos, tentam destruir famílias, reputações, pessoas. Parece grave quando escrevo assim. E é.
Imagine o quão desocupada - e desesperada - precisar estar uma pessoa para tentar manchar uma reputação junto a um idoso de 83 anos. Mas isso não é tão difícil de ser visto. Minha amiga sofreu uma intervenção. Toda família se reuniu e alguém foi escolhido para ligar para ela e questionar ‘o que está acontecendo com você?’.
Em outro grupo, um amigo sofreu ofensivas por parte de primos, que atacaram a sexualidade dele e ameaçaram expor no grupo da família. Uma conhecida foi ameaçada pelo patrão: “se não votar no candidato autoritário, corre o risco de perder o emprego”. E segue sendo monitorada pelas redes sociais. Nada de fazer o “L” nem mesmo no bar, com os amigos. A vigilância é intensa.
O desespero escapa aos dedos, ao status, às fake news. Há um projeto em curso que tenta destruir pessoas.
Para além dos ataques a jornalistas - que já sofri - dos ataques às pessoas nas ruas, da guerra não declarada. Temos essa, sutil. Que vem em forma de alerta, de declaração de afeto, mas que tem como objetivo destruir as pessoas que não votam no candidato autoritário. Ou votam, ou são destruídas.
Qual família está inteira? Todos os dias, meus amigos se lamentam. Há sempre um irmão, uma prima, uma tia, um pai, alguém que não compreende. Que não pacifica o ponto. Que, mesmo depois de quatro anos - uma pandemia, 33 milhões de pessoas com fome, etc - ainda luta por um sistema fascista e se orgulha disso. E se vinga de quem não concorda.
Novamente, que atire o primeiro like quem nunca rompeu uma amizade ou uma relação familiar por causa de política. Mas que também se junte a nós quem partilha dos mesmos ideais, que defende coisas absurdas como o fim da fome, o acesso à educação, a ampliação das universidades e a democracia.
Que possamos ficar juntos com as pessoas que a política nos deu. E que sejam estas as pessoas incríveis que nos cercam. Nossos amigos que não só defendem pautas identitárias, mas que não se incomodam com o fato de sermos quem somos e que lutam todos os dias para que possamos existir.
No Natal deste ano, a Janja vai ter que pôr mais pratos à mesa e nos receber. Essa luta nos custa muitas relações, afetos e saúde mental. Mas também nos dá a certeza de que, como nos lembra sempre Sérgio Vaz: briga tem hora para acabar, a luta é para uma vida inteira.
Tia do zap que me tornei, tô cheia de frases prontas e cartões de bom dia. Lutemos, pois, evocando a queridíssima Conceição Evaristo, que a gente diga combinando de não morrer, por mais que tentem nos matar.