Se contar, ninguém acredita. É clichê começar uma história assim, mas o que aconteceu foi de desacreditar mesmo. No entanto, está consumado.
A loucura é pensar que uma tarefa que exige tanta discrição foi executada por mim, que com os meus 130kg, não passo exatamente despercebida. Não sei dizer se foi a arquitetura do plano, o calor da hora, sorte, ou falta de atenção de quem estava em volta.
A discussão com a comissária de bordo teria sido um indicativo, caso as pessoas não estivessem tão absortas nas próprias vidas - e/ou no julgamento de que ‘não é saudável alguém desse tamanho’.
Eu, no lugar dela, teria ficado esperta. Mas não foi o que aconteceu. O suor frio que escorreu da minha testa enquanto eu digitava, no bloco de notas do celular, freneticamente, um e-mail para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) também poderia ter entregado meu nervosismo. Mas não foi o que aconteceu.
Onde é que já se viu?! Eu, logo eu. Ali, envolvida naquela trama. E o pensamento intruso do “e se?” foi se formando.
E se eu fizer? E se o pior acontecer?
Não demorou muito para que o pequeno demoniozinho sussurrando na minha orelha esquerda convencesse o anjinho que sussurrava na orelha direita: o pior já aconteceu!
Era verdade. Ele tinha razão. O que poderia ser pior do que aquela humilhação pública?
O jeito certo era eu me vingar e, até ali, já tinha vivido anos - e humilhações - suficientes para saber que não seria um e-mail que mudaria alguma coisa.
Mas e uma revolução? E se eu começar, neste exato momento, uma revolução?
É possível me armar disso e enfrentar todas as limitações impostas? O que mais eu preciso como dínamo e motivação?
O olhar de pena da comissária ao me arrancar da poltrona? A complacência? A desculpa de que “é uma recomendação da Anac, senhora”, ou “fique à vontade para as medidas legais”.
Quantas vezes você, caro (a/e) leitor já foi “arrancado” de um lugar marcado, pelo qual você pagou, por conta da sua aparência física? Por causa do seu corpo? Se sentiria mal? Humilhado? Concorda com o “famoso quem”, youtuber que berra aos quatro ventos que tudo bem acontecer isso e que erradas estão as pessoas que se constrangem? Acha que pessoas como eu não deveriam sair de casa? Deveriam morrer trancadas, sujas e humilhadas por “não terem se esforçado o suficiente” para serem magras e pertencerem ao padrão que estabelece quem merece ou não existir?
Mas o que eu estava prestes a fazer sim. Mudaria tudo.
Eu teria coragem? Há quem ache, até hoje, que não.
Contrariando o escândalo que sempre fui, me vesti de discrição, cálculos matemáticos e uma ‘pitada de psicopatia’ que me levou ao mais puro gozo diante da situação.
Ainda sentada, calculei o tempo exato entre o anúncio de desafivelar os cintos, as portas em automático se abrindo e o passageiro ao meu lado se levantar.
Dali em diante, tudo ocorreu em câmera lenta: o suor escorrendo ainda mais. Uma pizza embaixo do suvaco. Mas eu estava em Recife. É calor mesmo, não é?
E toda migalha de coragem que consegui juntar para furtar o extensor de cinto.
Fora alguns livros em bibliotecas públicas, eu nunca havia furtado nada, então, a falta de espaço combinada à falta de prática e o suor reiteram meu aspecto de ‘porca gorda’ que tanto gostam de me chamar.
Fixada nesse pensamento, o medo de ser presa e o desejo de vingança combinados explosivamente, desafivelei o cinto, enrolei o extensor - sim, o temido extensor de cinto para conseguir se prender às poltronas em aeronaves - o segurei bem firme na mão.
Com uma mão, limpei o suor e, com a outra, o objeto. Quase o “objeto a”, o anel do Gollum. Mentalmente, sussurrei “my precious” enquanto olhava para os lados, desconfiada demais e com frio na barriga demais - a famosa ansiedade - de quem acabou de fazer algo impróprio.
Imoral? Me recuso a adjetivar assim, já que falta moralidade no espaço entre as pernas dos passageiros e a poltrona da frente, entre o braço de um banco e outro, entre o preço da passagem aérea e o que é oferecido. Entre a sociedade absolutamente gordofóbica e mais de 50% da população brasileira gorda.
Assim, saí triunfante, pela porta da frente, segurando o extensor tal qual quem segura seu smartphone ou qualquer objeto de valor. O suor, devagar, virou uma sensação de alegria. Era possível sentir a dopamina trabalhando meu corpo. Ficou impossível segurar o riso!
E qual melhor forma de se vingar se não organizar a raiva e transformá-la em alegria? No pior dos casos, a história seria entretenimento para os meus amigos íntimos. Seria, claro. Se eu tivesse parado ali.
Mas não, a sensação foi tão empoderadora que, desde então, qualquer viagem que eu faça, peço o extensor e, antes de sair, repito o ritual: suor escorrendo, frio na barriga, medo e excitação e ‘objeto a’ nas mãos.
Se eu coleciono? Claro que não. Eu distribuo. Cada pessoa gorda que cruza meu caminho e relata problemas com o fecho do cinto em aeronaves ganha um.
Desde então, me delicio com os olhares que antes me puniam e me sinto tão imoral e suja quanto os julgamentos que recebo.
Isso seria suficiente para me transformar numa infratora? E qual seria a punição ideal para quem já é punido e violentado o tempo todo?
Antes, aterrorizada com o medo de não caber, agora, sonho com o dia em que abrirei alguma revista, de alguma companhia aérea, a 12 mil pés de altura e lerei a manchete: “estão sumido os extensores de cinto das aeronaves e ninguém sabe o que está acontecendo”.