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Estado de Minas COMPORTAMENTO

Eu não sou violenta! Violenta é a gordofobia que eu sofro

Como as discussões sobre pressão estética, body positive e distúrbios alimentares invalidam a luta por acessibilidade e tratamento humanizado


19/04/2023 14:42 - atualizado 19/04/2023 20:45

Jessica Balbino
(foto: João Paulo Ferreira/Divulgação )

Eu não sou violenta. Nem de longe. Embora seja marrenta e ostente, por vezes, uma postura construída pelos anos de pancada da vida, braba, eu não sou assim. Sou doce, terna e empática. Tanto que gasto inúmeras sessões de análise para dizer sobre como adoraria me priorizar, mas sempre acabo me sentindo culpada por validar o que sinto antes de acudir tudo e todos à minha volta. E, não raro, entendo que esse sintoma é reflexo da gordofobia. 

Mas, a coluna não é sobre minha persona no divã e sim como a gordofobia é violenta. Tão violenta, que passa batido. Que é sutil a ponto de não ser notada. Que é cooptada o tempo todo por pautas como pressão estética, body positive, empoderamento feminino e distúrbios alimentares. 
 

Vou ser odiada pelo que vou dizer - e aqui temos mais um requinte da gordofobia - mas todos estes argumentos só reforçam, ainda mais, essa opressão, que estrutural e institucionalizada. 

Vejam só, tudo que citei: pressão estética, body positive, empoderamento feminino e distúrbios alimentares são tentáculos da gordofobia, que deixa lastro para se sofisticar de forma a validar, classificar e amplificar estes discursos e soterrar as pessoas gordas ainda mais na invisibilidade, na falta de afeto e na desumanização. 

Qualquer pessoa sofre pressão estética. Qualquer pessoa pode não estar confortável com o próprio corpo. Qualquer pessoa pode se olhar no espelho e não se reconhecer no que vê. Isso é resultado da pressão estética Que dói. Que machuca. Que é perversa pra caramba. Mas, tratá-la gordofobia quando se trata de pessoas magras é invalidar uma causa que tem outros furos. 

Uma pessoa que não está contente com o próprio corpo e ainda sim, é magra, vai ser atendida num hospital tão logo der entrada. Uma pessoa gorda vai aguardar, na porta, por uma maca que a caiba. E vai morrer ali, esperando. Como já vimos ocorrer este ano. Uma pessoa que sofre bulimia e é magra, ainda que não esteja fisicamente saudável e precise de cuidados, vai para uma entrevista de emprego e vai ser contratada. A pessoa gorda, possivelmente, será rejeitada. Lida como preguiçosa, como porca, como alguém que 'não se encaixa nos padrões da empresa', ainda que ela esteja saudável. 

Uma pessoa que passou por um relacionamento abusivo e não transava porque a outra pessoa era abusiva está numa situação lamentável. Eu realmente sinto muito. Mas muitas pessoas gordas sequer conseguem se relacionar, porque não são lidas como pessoas. São lidas como aberrações. 

"Ah, mas pessoas que sofrem com distúrbio de imagem ou alimentar não conseguem se ver bem". 
Acredito. Mas reforçar isso é transformar esse lugar que precisa de tratamento especializado em gordofobia é muito confortável. 

Quando uma pessoa magra, que desfruta de todos os privilégios sociais que a magreza oferece - ainda que sofra com problemas de saúde física e mental - se diz gorda, ela reivindica para si uma opressão que não sofre. E, ao reivindicar isso, ela recebe para si toda empatia, amor e cuidado. 

Está errado? Não! Mas ela só recebe isso porque é magra. Ela só desfruta de todos os privilégios porque é magra, não porque tem algum problema de saúde. E é isso que eu espero, de coração, que vocês entendam. 

Não estou negando os problemas de ninguém. Mas quando eles estão no corpo magro, essa pessoa, que tem o corpo mais aceitável e amado do mundo, recebe um 'consolo' por ser quem se é. Vão dizer que ela é maravilhosa, que ela não precisa ficar triste, que ela 'não é gorda não, é maravilhosa'. E, enquanto essa cena acontece, corpos como o meu vão ser escorraçados em praça pública por apenas existirem.

E a perversão é justamente essa. O deslocamento de uma causa para a outra, a fim de invalidar a gordofobia como uma opressão de fato e transformá-la numa questão de gente magra. 

E não, não é uma hierarquia de opressões. É um jeito de dizer que a gordofobia é uma questão estrutural e que, todo restante, não está visível como um corpo gordo. 

Se sentir mal com o próprio corpo não te faz ser uma pessoa gorda e não te faz sofrer gordofobia. Assim como se amar, se sentir maravilhosa e empoderada não te blinda das agressões diárias contra a gordofobia.

As pessoas apanham na rua por serem gordas. Eu já fui agredida por estar, existindo, sendo gorda. Já tive o muro da minha casa pichado numa tentativa de me agredir, por ser gorda. Já fui recusada em várias vagas de trabalho, por ser gorda. Sinto uma solidão afetiva absurda, por ser gorda. Não raro, recebo indicações de cirurgias bariátricas quando vou ao médico com furúnculo nas costas. 

Então, eu tenho empatia pela sua luta feminista. Mas, pessoas iguais a mim estão morrendo, enquanto pessoas magras, brancas e privilegiadas são celebradas o tempo todo no mundo. A gente não fala e não vive no mesmo lugar. E você não tem culpa de ser uma pessoa privilegiada, mas que tal, só por algum momento, se perguntar: e se eu abrir mão, nem que seja um pouco, de tanto privilégio e acolher quem sofre opressão?

Porque o setembro amarelo rola todos os anos, mas a empatia mesmo só é cobrada se os corpos forem magros. Aí aparece da cartola distúrbios alimentares, relacionamentos abusivos, pressão estética, etc. E eu devo ser empática pra caramba com isso. Mas, o que eu sofro, sendo esfolada viva todos os dias do ano não valem. Nem em abril. Nem em setembro. Não tem mês pra pessoa gorda. Nem espaço no mundo. 

Para vocês, só está bom se o corpo gordo estiver sendo achacado. E se pessoas magras estiverem se dizendo gordas e recebendo toda empatia do mundo por isso - o que só ocorre, claro, porque elas são magras. Se fossem gordas, de fato, estariam sendo cobradas do por quê não emagrecem, afinal, é tão fácil, é só fazer uma bariátrica, tirar a bunda do sofá, trancar a boca, se amar mais, cuidar da própria saúde, 

Fato é que vocês estão pouco se fodendo para a saúde das pessoas gordas Vocês querem mais é ver gente gorda morrendo - de preferência, sem atendimento - para que toda narrativa caia na conta da pressão estética: ai, mas fulana se via feia. Cadê sua empatia?

E eu te pergunto: cadê a sua empatia quando o jovem Vitor morria sem atendimento depois de uma via sacra pelos hospitais públicos de São Paulo? Cadê sua empatia quando pessoas gordas estão só existindo, e você vem, armado até os dentes, dizer: que romantização da obesidade!

Cadê sua empatia quando a garota gorda diz que nunca foi beijada e nem desejada e você berra: emagrece que passa?! Cadê sua empatia quando as pessoas gordas são levadas, feito bichos, para hospitais veterinários, para passarem por exames?

Ai, mas você não tem empatia?


É o que eu ouço quando digo que pressão estética, body positive e distúrbio alimentar são pautas que ramificam da gordofobia, mas que não refletem a totalidade, porque sofrê-las - e sim, eu tenho muita empatia - coloca as pessoas em pedestais e desbanca sofrimentos gordos

Ai, mas eu não tenho direito de me sentir mal? De ter distorção de imagem? Distúrbio alimentar? Teeeeem, meu anjo. Você tem direito a tudo. 

Só não tem direito de surfar numa pauta ou opressão que não são suas. Tem, não só direito, mas dever de entender que distorção de imagem não é gordofobia. Que não se ver com o corpo que gostaria não te faz uma pessoa gorda, tampouco te faz sofrer o que uma pessoa gorda sofre. E sim, é preciso ter empatia com pessoas gordas e não pensar: emagrece que resolve. 

Sabe porque: não resolve! 


Quer vocês queiram ou não, as pessoas gordas vão seguir existindo. E ser violento com elas só vai aumentar e amplificar a violência, mas não vai coibir a existência. Vão existir na violência, no auto isolamento, na falta de amor e acessos, mas vão existir. 

Então, não adianta mandar gente gorda emagrecer. E nem tratar de forma violenta. Nem com perversão. Elas vão continuar existindo. Achacar ou não, não vai te livrar do medo que você tem de engordar, exposto, ali, na sua cara. 

E, ouso te dizer que, mesmo com toda violência, eu tô aqui. Em pé, firme, sendo absurdamente didática - mesmo que vocês não mereçam isso - e existindo. Mesmo diante de todas as agressões. Mesmo diante de todas as tentativas de cooptar a pauta. Mesmo diante de todo contorcionismo retórico que vocês fazem para invalidar nossas vivências. 

Sabe quando eu vou ter empatia com gente magra, branca, padrão e biscoiteira? No dia que não existir mais gordofobia e corpos como o meu não morrerem mais por falta de acesso ou afeto. Até lá, não contem comigo para essa palhaçada. Eu não sou violenta. Violenta é a gordofobia. Eu e meus textos somos só uma face de como lidar com ela. E seguir existindo. Existindo. 

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