Foi o que pensei quando, rolando minha timeline, me deparei com um tuíte do cara que, até dias atrás, eu estava rindo bastante do humor, da sagacidade, da capacidade rápida de raciocínio. Só pode ter sido hackeado, pensei. E depois, tristemente - mas não tão surpresa assim, confesso, constatei que era ele mesmo.
A manifestação se deu após uma decisão judicial retirar do Youtube um especial de um humorista por fazer "piadas" racistas e contra pessoas idosas e com deficiência.
Ah sim, ele estava falando sobre limites do humor em pleno maio de 2023. Mas, não só. Ele estava defendendo que um humorista famoso por achincalhar grupos marginalizados e oprimidos possa seguir fazendo isso, com frases como "Não gosta de uma piada? Não consuma essa piada" ou "Quem foi lá assistir ao humorista adorou. Riram muito. Quem não gostou das piadas são os que não foram. Pronto, assim que tem que ser. Ah, mas faz piada com minorias… E qual o problema legal?" e ainda "Ele tem o direito de ofender"
O problema Fábio, é que não dói em você. O problema é que você não foi escravizado, não viu alguém com um corpo igual ao seu morrer na porta de um hospital por falta de maca. Imagina brigar na internet pelo "direito de ofender". Você se leu, Fábio? Por que a ofensa, neste caso, é crime. Mas, ainda que não fosse. Ele tem mesmo esse direito? E o problema é de quem não acha graça. Sério?
Fábio também diz: "Pra mim democracia não é um regime pra você defender as suas ideias, mas pra quem você não concorda poder defender as delas. Não confundam ‘não gosto dele’ com ‘ele não pode falar’. Não entrem nessa conversa com a emoção, entrem com a razão.”
Pensa num papo torto e sem simetria alguma. Pois é. Ele pode falar sim, claro que pode. O que ele não pode é incitar ao ódio. É reproduzir opressão. Isso nada tem a ver com democracia, Fábio.
Nós não somos minorias também. Somos maiorias marginalizadas, justamente por causa de piadas assim. Tem que ser muito covarde para dizer, publicamente, que alguém tem o direito de ofender. E quando se faz isso, fica evidente que o autor da frase, historicamente, não pertence aos grupos que são ofendidos.
Esse humorista já foi citado aqui. Em 2021 ele perdeu um processo contra a bailarina e influencer Thaís Carla pela perseguição e uso de imagens feitos na internet. Foi a primeira condenação no país por gordofobia. Sim, aquela mesma gordofobia que mata as pessoas diariamente. Que matou o jovem Vitor na porta de um hospital, sem maca, no começo deste ano. Que matou recentemente uma jovem vítima de ora, ora, vejam só: piadas, entre seu grupo de amigos.
E eu nem me estendi ao falar sobre racismo ainda. Mas, sim, o tal humorista não poupa piadas contra pessoas pretas. E, não, Fábio, não é evidente que você é contra o racismo. Se fosse, teria pensado um pouco mais antes de defender a "liberdade de expressão" a qualquer custo. Aliás, liberdade esta que violenta corpos como os meus, corpos trans, corpos de pessoas que não se encaixam no padrão. E não, não é uma questão de não consumir esse tipo de piada. É uma questão de, em 2023, perceber que poucas coisas são mais antidemocráticas do que a opressão através da linguagem - e do riso.
Nós somos muito das piadas das quais achamos graça. Do humor que celebramos. E não é divertido dizer que as pessoas escravizadas tinham emprego e também reclamam. Violência não é humor. E me espanta que eu tenha que escrever isso em pleno 2023.
Ser aliado a qualquer causa anti opressão não é dizer que é em entrevistas, Fábio. É praticar. E celebrar a liberdade de um humorista - que de engraçado não tem nada - é rir na nossa cara. Tripudiar em uma dor que não é sua. É celebrar o pacto da branquitude em sua manifestação mais óbvia.
Eu não compactuo com a censura, isso é óbvio. A censura trouxe, no Brasil, consequências desastrosas para a imprensa, para as artes e, por conseguinte, para a sociedade de forma geral. E sim, eu prezo muito pela liberdade de expressão, mas é importante dizer que ela não pressupõe outros direitos constitucionais. Racismo segue sendo crime. LGBTQIA+fobia, também. Ofender uma criança autista talvez não seja crime. Mas quem faria uma piada com isso? Ops, o humorista que Fábio Porchat defende fez.
A roteirista Renata Corrêa pontuou de forma brilhante e didática: "Não existe profissão que está acima do código penal. Se um cirurgião comete um assassinato usando um bisturi continua sendo crime. Racismo em cima do palco continua sendo racismo."
Será que é só uma piada? Tentar colar esse discurso de liberdade à ausência de consequências ou ao "quem se sentiu ofendido que procure seus direitos" é perverso para caramba. Tivemos 400 anos de escravidão, duas ditaduras, alguns golpes, dois impeachmeants, um governo genocida, e chegar aqui e dizer que tá tudo bem fazer piada com criança deficiente ou com pessoas pretas e que quem se sentiu ofendido que procure a justiça é sadismo.
Para mim, liberdade de expressão caminha com responsabilidade pelo que se diz. E humor é sofisticação política. Rir de pessoas que morrem a cada 23 minutos na mão do estado é crueldade.
O corporativismo presente na fala exala ódio de classe e raça. Cheira a privilégio - de todos os tipos. E gente assim não é e nunca foi aliada. Erro meu acreditar, dar palco, ouvir, me divertir com e junto.
Não me venham com mimimi, falar em cancelamento e hate. Isso só acontece com quem é oprimido. Não é o caso aqui.
Dito isso, eu acho graça em ver racista apanhando na rua. Em ver conservador se fudendo. Em ver gordofóbico sendo espancado. Posso começar a fazer isso em nome da liberdade de expressão e quem se sentir ofendido procura seus direitos?
Não dá para se dizer progressista, antirrascista, aliado e apoiar opressor.
Francamente, que história é essa, Porchat?