Vanguardista. Assim eu defino o espetáculo "Stand-Up Poetry: palavras para o futuro" das artistas Luz Ribeiro e Mel Duarte, que esteve em cartaz no último final de semana no Sesc Belenzinho em São Paulo e se prepara para uma temporada em setembro e outubro também na capital paulista, como o festival Hipertexto.
Mas não é só. As palavras para o futuro são o agora. E, no palco, acontecem de forma rápida, urgente e sarcástica. Muito sarcástica.
Historicamente no lugar do riso, no palco, as mulheres negras desafiam isso. Rapidamente, o local é invertido. E é essa subversão que dá o tom ao espetáculo. Entro muito feliz e com a expectativa alta. Saio muito mexida, emocionada e pensando na construção de algo que ainda vai reverberar por muito tempo dentro do público que se permitiu atravessar pela encruzilhada oral proposta pelas artistas.
Marcadas pela perspectiva da palavra falada ou spoken word – e suas poéticas –, as artistas constroem um lugar em que mulheres negras podem se permitir sentir e viver a leveza. Profetizando gritos do presente, praguejando e abençoando o futuro e impregnando palavras no tempo, garantindo a futuridade, o espetáculo se apresenta como um amálgama entre o sarau, o teatro e a música, sem se limitar pelas especificidades de tais linguagens.
Partindo da premissa de quem historicamente foi o motivo do riso, a mulher negra anseia rir por último para rir melhor, rir por último para rirmos todas.
Amante das artes, sobretudo integradas e da palavra, confesso que nunca tinha visto algo semelhante. E sei que por trás da genialidade em cena, com direção de Naruna Costa, o espetáculo carrega muito dos traumas, das vivências, das violências e do ritmo das atrizes, fazendo dele único.
Penso na trajetória que levou à escolha de cada cena, na direção que escolheu exatamente aquela forma de contar aquela história, em como Jal Vieira escolheu as cores e montou o figurino. Em cada pessoa que trabalhou arduamente para que algo tão visceral estivesse acontecendo.
Tanto apreender os segundos enquanto enxugo as lágrimas e penso: quero lembrar disso tudo amanhã. As palavras para o futuro são agora. O ato I do stand-up é achar graça de si mesmo, sem perder a graça na vida. Sem excluir os episódios de dor. Mas, sobretudo, sem fazer da dor e da violência o único caminho possível de narrativa.
A acidez é arma quente na oralidade das poetas, que mesclam textos de saraus, slams e de uma vida inteira em cena, rindo de si mesmas, da branquitude que insiste, com ferocidade, em fazer parte do grande unicórnio que chamam antirracismo, rindo do que nem sempre seria para rirmos. E, claro, emocionando.
Luz Ribeiro e Mel Duarte excluem do horizonte qualquer fetiche que se tenha sobre a dor da mulher preta. Não estão ali para entreter através da violência que atravessa séculos, mas para reafirmar o local ancestral que habitam: e transformam o hoje. Vale repetir: da forma mais bonita e gostosa que de tem, que é através do riso.
Atos sobre maconha, religiões neopentecostais, política, maternagem, relacionamentos, mercado literário e artístico, slam e até a Rede Globo fazem parte do enredo construído pelas atrizes, que também assinam o texto é a dramaturgia do espetáculo.
O entrosamento das artistas não se dá apenas nos palcos. Ambas são parceiras de uma vida inteira, tendo integrado juntas os coletivos Poetas Ambulantes e Slam das Minas, além de diferentes projetos, mesas de conversa e apresentações. Agora, investem no novo e, de fato, nas palavras para o futuro.
Palavras que estão no incômodo que provocam em quem assiste. No silêncio depois de uma piada que não faz rir. No medo que sentimos enquanto as observamos, tanto pela pele alvo, como pela grandeza que se impõe no palco e no jogo de luzes.
Quantas vezes você já riu com uma mulher negra? E essa pergunta é a que vai nos perseguir durante todo o espetáculo e muito tempo depois dele. Não é rir de, mas rir com. E as questões sobre riso, família, infância e mulheridades são tocadas de formas inéditas. Com ironia, preparo e cuidado. Nada é por acaso. Nenhuma piada é apenas o riso pelo riso. Há uma sofisticação na construção de cada narrativa e as atrizes, em cena, não cansam de surpreender.
Talvez eu devesse falar mais sobre o texto, mas isso me obrigaria a dar spoilers e eu gostaria que todo mundo assistisse e pudesse se encantar, exatamente como eu me encantei.
Ver corpos de mulheres pretas vivas em cena é bonito. Como diria Juliana Borges - muito bem lembrada é referenciada no espetáculo - “uma mulher negra feliz é um ato revolucionário”.
Seria pretenso dizer que a revolução acontece ali? Seria ingrato não dizer? Gosto de pensar que eu saí diferente. E essa diferença extrapola os limites do corpo. Ouvi dizer que na química cerebral, quando gargalhamos, tem o mesmo efeito de um orgasmo. Eu sou obcecada por quem me faz rir - e não acho que este seja um mecanismo fácil, mas Mel e Luz conseguem fazê-lo na dose certa entre o afeto, o corte e o gozo.
Desejo, então, que a branquidade que se diz aliada aprenda a aceitar isso. E a rir junto e não de mulheres pretas. Que baixe a guarda e ouça, com atenção, o que está sendo contado. E nem sempre são palavras. Mas é sempre sobre o amanhã, que desejo que seja infinitamente melhor que o hoje. Aos racistas: fogo!
O convite é para que, juntas, possamos caminhar rumo ao futuro. Que ele seja de palavras mais palatáveis. Que ele seja lindo como uma mulher preta… sorrindo!
Sobre o espetáculo
O espetáculo é uma criação de Luz Ribeiro e Mel Duarte, tem produção de Pri Mastro, direção de Naruna Costa, figurino de Jal Vieira, sonoplastia de Joseph Rodriguez, preparação de Robert Gomes e Uashington Gabriel, iluminação de Juliana Jesus, projeções com Vic Sales, maquiagem e adornos de Steyce Norrane, na técnica de som Rafael Fish e Daniel Marinho, nas fotos Gustavo Moraes.
Próxima apresentação
No festival HIPERTEXTO dia 20 de setembro na Casa das Rosas (Av. Paulista, 37 - Bela Vista, São Paulo)