Jornal Estado de Minas

Se a Thaís Carla não existisse, o que você faria com seu ódio?

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E se a Thaís Carla não existisse, o que você faria com o seu desejo de punir e constranger pessoas gordas? – caso alguém não saiba, Thaís Carla é uma dançarina, modelo e ativista brasileira, com milhões de seguidores nas redes sociais. 





Veja, este não é um texto de defesa sobre a Thaís Carla – ela nem precisa disso –, mas um texto sobre o direito de existir e para dizer, de uma vez por todas, que humilhar e constranger pessoas gordas não faz com que elas emagreçam. 

Diariamente, me pergunto sobre isso e o motivo não é que eu vá saber. As piadocas e o desrespeito pulsam na minha timeline bem mais do que qualquer conteúdo produzido pela Thaís – por quem tenho uma profunda admiração pessoal e profissionalmente. 

O tempo dedicado para atacá-la revela um investimento libidinal por parte de quem faz isso que diz muito mais sobre as pessoas do que sobre ela. Recentemente, um suposto músico fez não uma música, mas o que ele julga como tal, apenas para atacá-la. E o disfarce é o mais óbvio possível. Ele mesmo afirma:  A nossa luta não é contra a Thaís Carla./A nossa luta é contra um discurso negligente e vitimista./A nossa luta é contra a censura./ A nossa luta é contra um cancelamento parcial e seletivo."





O que ele chama de "discurso negligente e vitimista" é o que chamamos de gordofobia. A "luta" dele contra a censura é pelo direito de ofender pessoas fora dos padrões sem que isso seja considerado uma opressão. E, infelizmente, de certo modo, é. O vídeo tem quase 4 milhões de visualizações no Youtube e a maioria dos comentários apoia o suposto cantor e faz piadas no melhor estilo quinta série contra a dançarina. Deprimente de ver. 

Recentemente, também, uma paródia ganhou as redes com uma suposta homenagem à Thaís Carla. A própria dançarina fez uma coreografia em cima da música, que não teve o autor divulgado. A mim, pareceu uma tiração de sarro sofisticada, mas que, sem dizer que estava tentando ridicularizá-la, ganhou contornos dela mesma, que tirou onda em cima da paródia e ainda fez conteúdos em cima disso. 

Os comentários, claro, têm sempre o mesmo tom: de deboche, afronta e escárnio. Vez ou outra, a sensatez de quem entende que nada disso fará com que ela deixe de existir, pelo contrário: trará mais visibilidade, alcance e monetização. 





Diariamente, as notícias envolvendo a Thaís Carla por perfis que vivem em busca de clickbaits e trazem o que rola no mundo das subcelebridades descrevem os posts com: qual a sua opinião?, para gerar engajamento (o que é óbvio) e por saberem que, sim, gordofobia engaja. Todo mundo tem uma opinião. A mais comum é: para de romantizar a obesidade. Lamentável, óbvio. E fica sempre nesse universo: “vai morrer”, “tá gorda”, “kkkk”, “pensei que fosse um planeta”, enfim, coisas que uma criança de cinco anos diria para tentar ofender um coleguinha que se destaca mais que ele em alguma atividade. De enjoar o estômago pela obviedade, pela perversidade, pelo modus operandi da coisa toda. 

Me irrita ver portais noticiando qualquer coisa e buscando esse engajamento pautado na humilhação. Imagine se perguntariam o que alguém acha num caso de racismo ou LGBQTIA+fobia?! Seria crime. Pois é. Mas a gordofobia é uma opressão muito legalizada. É, inclusive, muito "cool" ser gordofóbico e disfarçar isso de preocupação com a saúde, de discurso embasado na OMS, de fitness, mas que na verdade é puro ódio do que é diferente. 

Ex-parlamentares cassados, "humoristas" fracassados e um sem número de gente desocupada se mantém por repercutir toda e qualquer nota sobre a Thaís Carla. Gente que defende o direito de ofender e chama gordofobia de censura, como escrevi aqui, quando o próprio Fábio Porchat fez isso. 





Minha questão é: se a Thaís Carla não existisse, o que você faria com seu ódio? Para onde iria essa irritação com o que é diferente? O investimento que se gasta para tentar ofender, descredibilizar e ridicularizá-la é absurdo. Eu fico pensando a quais grupos marginalizados direcionariam esse sentimento desprezível caso a Thaís Carla não fosse a potência que é nas redes sociais. Caso não houvesse mais como fazer memes com a imagem dela. Sobre o que um tal humorista faria piadas e ganharia seguidores? Alguns parlamentares embasaram suas "lutas" esvaziadas de sentido sócio-político e cultural em quê, caso não pudessem se dizer vítimas de uma perseguição ideológica que tenta punir quem ofende gratuitamente as pessoas? 

Caso a Thaís Carla não existisse, você faria o quê com seu medo de engordar? Diria: nossa, está parecendo (insira aqui algum nome de alguém gordo para depreciar uma pessoa)... O que você diria na tentativa de ofender alguém?

Supostos músicos fariam músicas para quem? Lutando exatamente pelo quê? Com quem você faria memes comparando a gestação com um hipopótamo e sairia ileso?


Sinto o mais absoluto nojo quando leio coisas como: até tenho uma opinião sobre isso, mas não tenho dinheiro para pagar advogado. Porra, então tenha dinheiro primeiro, depois, emita-a e sustente-a caso seja processado. É o mínimo que se espera de alguém cuja escrotidão chega ao nível de ridicularizar uma mulher por causa do tamanho do seu corpo. 

Tão deprimente quanto qualquer outro conteúdo em que apareça a Thaís Carla, até mesmo nas redes sociais dela. Dia desses, numa postagem de luto pela morte do MC Marcinho, ela foi atacada. E os ataques são sempre pelo peso, fazendo piadas – e isso, acredite, é o menos pior que podemos ler. Muitos vão ao extremo, de desejar a morte, de desejar mal aos familiares e filhos. Não são piadas. É um discurso bastante alimentado pelo ódio e naturalizado pelo: "mas ela romantiza a obesidade". 

Meu desafio, caro leitor, é que me apresentem um único conteúdo (foto, vídeo, áudio, etc) da Thaís Carla dizendo: “engordem, é muito bom”. Ou: “eis aqui uma receita para engordar”. Ou algo do tipo. Não há. E eu sei porque fiz meu trabalho: apurei. O que ela faz, pasmem, é existir. Isso mesmo: ela existe. E não pede desculpas por isso. E não se penaliza. E ganha dinheiro com a visibilidade que tem. E ignora, solenemente, os ataques que sofre. A resposta dela é a melhor possível: o desprezo. 





Ela despreza quem faz isso com ela. Ela segue vivendo ao lado do marido, das filhas, de uma família linda que sempre sonhou e construiu. Ela malha, faz atividades físicas, cozinha, viaja, trabalha bastante. Ela se dedica a manter a carreira. Posta nas redes sociais e segue crescendo. Tem um discurso coerente em busca de direitos para as pessoas gordas. Encabeça lutas que visam a criminalização da gordofobia. Inclusive, há um Projeto de Lei para ser votado e que leva o nome dela. Ela age, de forma corajosa, contra os haters, contra o ódio na internet. Ela age através da justiça. Ora ganha, ora perde, mas segue vivendo, existindo, trabalhando. 

E não tem nada de errado com isso. Não tem nada de romântico. Xingar a Thaís Carla nas redes sociais não faz com que ela tenha o desejo de emagrecer. E nem que precise, já que ela está saudável no peso que está – mesmo que para algumas pessoas isso pareça absurdo, não é. Não tem nada de romântico em fazer coisas absolutamente corriqueiras, que qualquer pessoa magra faz: ter um relacionamento, filhos, construir uma casa, postar o conteúdo nas redes. 

Produzir conteúdo tentando ridicularizar o corpo ou a vida dela não fará com que ela emagreça. E nem fará com que outras pessoas gordas emagreçam. É só violência gratuita. É só ódio disfarçado de um discurso anti censura – e convenhamos, não existe censura quando se trata de piadas e ódio ao corpo gordo. É só desejo de humilhar o outro por aquilo que ele é. É só coisa de gente perversa. E burra. 





O termo "romantização da obesidade" me dá engulhos. Honestamente, tá cheio de influencer por aí receitando dieta milagrosa, pílula não sei de quê, procedimento duvidoso e tudo mais para emagrecer e ninguém questiona. A real romantização é a da magreza. Inclusive já falei disso aqui

Outra coisa que me desgasta é o papo de "ain, mais obesidade é doença". Só eu já escrevi um sem número de vezes aqui nesta coluna, com estudos e tudo mais, sobre não ser, necessariamente, se não estiver atrelada com outras comorbidades. Você pode ler aqui, inclusive. 

No entanto, supondo que seja, o que você faz com isso? Humilha, constrange e faz piada com pessoas gordas, como se isso as fizesse deixar de existir? Desumanizar estes corpos é o melhor caminho para lidar com o que você considera uma doença? Você trataria uma pessoa com câncer, com deficiência ou doente da forma como trata pessoas gordas? Se usarmos o argumento da doença como validador, elas precisariam de carinho e cuidado, e não de escracho público, certo?

Eu também já disse aqui que espero encontrar a imortalidade das pessoas magras. Sim! O senso comum nos diz que pessoas magras não adoecem, certo? É só bullshit que leio nas redes, nas colunas de opinião, nas redes sociais. E escárnio contra os corpos gordos. 





Estamos chegando em setembro. Quando comemora-se o Setembro Amarelo, o mês da prevenção contra o suicídio. Mas só vale, claro, quando essa ideação fere pessoas magras. Se for alguém gordo, ou a Thaís Carla, tá liberado. Setembro é, também, o mês da luta antigordofobia. E, claro, diante dos conteúdos, o que mais vamos ver é o inbox das pessoas aberto, mas, novamente, para corpos magros, porque no que disser sobre o direito de existir das pessoas gordas, vamos ver ataques, piadas e ridicularizações. 

Confesso que pensei muito antes de fazer esse texto. Mas ele está latejando na minha cabeça há muito tempo. Diante de notícias como a bariátrica da MC Carol, da Jojo Todynho e de outras personalidades – entendo a decisão delas –, me pergunto: até onde/quando a Thaís Carla aguentará ser tão oprimida? E mais: se ela começar, algum dia qualquer, um processo de emagrecimento, passará a ser amada e apoiada como todas as outras?

E essa pergunta, novamente, diz mais sobre você: para você, alguém só tem valor se for um corpo buscando se encaixar no padrão?

Um jornal de grande circulação teve a coragem de estampar na manchete: "com cirurgia bariátrica em alta, Thaís Carla pede o fim das comparações". Primeiro, que é irresponsável. Estamos falando de uma cirurgia de grande risco, e não de um procedimento tranquilo. Segundo, que estamos falando de saúde, não de estética. As pessoas precisam, por Deus, pararem de atribuir cirurgia bariátrica a uma escolha fácil para quem precisa emagrecer. É uma cirurgia delicada, que traz sequelas permanentes a quem faz. Não é algo como fazer henna nas sobrancelhas ou botar um megahair, sabe?

A questão é, inclusive, extensiva às feministas, às mulheres de esquerda, aos homens desconstruídos do padrão e  aos propagadores de amor livre e que, na internet – e fora dela – fazem piada em nome do padrão, contra "obesidade" (que é uma doença e blá-blá-blá) e com a figura da Thaís Carla. Muita gente cravou o 13 nas urnas, se veste de "o amor venceu", mas defende o discurso neoliberal de padronização dos corpos e de que todo mundo tem que ser magro para ser um ser humano minimamente aceitável na sociedade. 

Que porra de revolução é essa? 

Tuítes como: "imagine você descobrir que sua mãe é a Thaís Carla? Eu mesmo me abortava" dão conta de que as pessoas só são contra o aborto se este for para regular o corpo da mulher. Se for para oprimir um corpo gordo, tá liberado. Ou ainda: "AVISO IMPORTANTE!!!!!!! proibido se matar, chances de reencarnar como filho da thais carla" .  Violências como ser dada como morta pelo INSS já ocorreram com a bailarina. 





Imagina jurar que está sendo muito legal em fazer esse tipo de "piada" com uma pessoa que é mãe? Com uma pessoa que luta pela acessibilidade não apenas de corpos como o seu, mas de outras pessoas também? Que só está vivendo a própria vida?

Se não der para você ser obcecado pela Thaís Carla e pelo corpo gordo dela, você será obcecado pelo quê?

É cansativo pra caramba ter que dizer o óbvio. Mas fica aí o questionamento: você acha mesmo que fazer piada com uma pessoa gorda vai fazer ela emagrecer e deixar de existir?

Porque olha, sendo, eu, uma mulher gorda a vida toda, sigo existindo apesar das piadas, apesar da gordofobia explícita e da implícita, apesar dos "amigos" que se dizem aliados, mas são só discursivamente alinhados com o que pessoas como eu gostaríamos de ouvir, apesar da falta de acessibilidade médica, apesar de toda gordofobia disfarçada como discurso de saúde, apesar disso tudo, eu sigo existindo. E teimando em ser feliz. E escrevendo sobre isso. E valorizando pessoas como a Thaís Carla, que fazem o mesmo. E desprezando gente igual a você. Sim: desprezando. 

Mas fica o questionamento: se eu te ignorar, você ainda existe? E se você me deixar viver sem me ridicularizar?