Eu sou uma mulher gorda e, pelo menos uma vez por dia, tenho que lidar com uma pessoa magra me dizendo: Ah, mas eu sou magra, não é meu lugar de fala. A sucessão de erros e descompromisso é colossal. Primeiro ao usar de forma errônea o conceito de lugar de fala. Segundo porque estabelece um lugar de diferenciação, como se o fato de habitar um corpo magro lhe conferisse superioridade - e a gordofobia já começa aí.
Essa postura me diz muita coisa, mas, ela é, sobretudo, preguiçosa e arrogante. Quem a adota se coloca num lugar que, na prática significa: "não é um problema meu, não me afeta, foda-se".
No entanto, assim como outras opressões: racismo, lgbtoqia+fobia, capacitismo, etc, a gordofobia não beneficia ninguém, embora pessoas magras possam achar o contrário e, temporariamente, fazerem uso dela para se distinguirem e quem não se adeque que se foda.
Eu vejo você fingir que eu não existo. Eu vejo você fingir que não viu meus posts. Que não leu minhas enquetes. Que esse assunto não é pra você. Eu percebo seus olhares. Eu vejo, na sua expressão facial, o nojo que você sente de pessoas gordas. Eu vejo, na sua expressão corporal, como você se sente superior por ser uma pessoa magra. Eu percebo, na sua fala, disfarçada de carinho e/ou preocupação, o tom de desprezo. Eu sinto a sua gordofobia. Exatamente como sinto a das pessoas que não se dizem minhas amigas e/ou progressistas.
Mas, para seguir existindo - ou pelo menos, fingindo que não estou lutando por isso em 100% do tempo - eu finjo que não percebo. Eu escuto seu silêncio quando eu falo sobre afeto e como e viver uma vida preterida. Eu sinto suas indiretas. Eu sei que você pensa que eu sou "uma porca gorda doente/ que obesidade não é saudável/ que esse é meu único tema/ que eu deveria emagrecer e pertencer, já que eu falo tanto sobre isso".
É palpável. Quase dá para tocar.
Mas, eu finjo que não. Sorrio, aceno e sigo lutando para existir. Eu te vejo ignorando meus textos sobre o tema. Te vejo fingir que compreende o que é a gordofobia, mas fugindo do tema como o diabo foge da cruz.
Sinto seu revirar de olhos cada vez que meu "spam do bem" chega na sua caixa de entrada e você pensa: mais um texto falando a mesma coisa. Sinto sua empolgação com todos os outros assuntos, menos quando é gordofobia.
Sinto que você já ralou e estudou bastante sobre racismo, já que pega mal ser racista em público, então, você dominou termos e linguisticamente não comete mais nenhum ato que configure injúria racial, afinal, é crime. Você até paquera pessoas pretas e, eventualmente, se elas forem absurdamente deslumbrantes e desejadas, você se relaciona com elas em público. É importante mostrar que não é racista. Mas gordofobia não. Só pega mal se eu estiver perto. Eu sou a cota. Assim como aquele seu amigo trans, não-binárie. Você até se permite ser visto ao lado dele no Carnaval ou em algum outro momento festivo. Mas, não vamos exagerar. Convidar para suas festas íntimas já é demais.
Assim como a mim. Uma foto na rede social, comigo atrás, escondida, é suficiente. Você não vai querer que as pessoas que você se relaciona saibam que você tem uma amiga gorda, não é mesmo? Nem vai me querer ao seu lado em viagens. Eu ando mais devagar, não caibo em qualquer espaço, sempre peço extensor de cinto e você tem que se preocupar se eu vou caber na cadeira do bar ou de praia do estabelecimento descolado. É muita coisa. Você viaja para ficar de boa. Pra quê vai querer uma pessoa gorda contigo?
Mas você gosta de dizer que temos uma relação. É importante manter a cota. O status quo. Fingir que é progressista. E todo progressista é inclusivo. Você até gosta de mim. Eu sou interessante. Ouço com atenção. Abro mão do que quero para agradar e ser aceita. Tenho um bom papo. Tenho boas ideias e referências. É bom estar comigo. Mas sempre para usar da minha intelectualidade. Você jamais cogitaria qualquer coisa comigo. Eu sou gorda. Não faço parte do seu imaginário magro.
E tal qual no pacto da branquitude, o pacto da magreza funciona muito bem. Pessoas magras se reúnem para manter e cuidar de seus privilégios. Seja nos comentários das redes sociais para me atacar, seja para imaginar futuros sem pessoas com meu corpo, seja para me manter ali apenas por cota. Seria muito mais fácil se eu fosse magra, não é mesmo? Ou se, pelo menos, eu me esforçasse para emagrecer. Mas não. Eu não me desculpo pelo espaço que ocupo. Eu simplesmente vivo minha vida e brigo para existir -e para que pessoas como eu também possam fazê-lo. Eu tô sempre muito ocupada lutando por acesso. Você não tem tempo - e nem interesse nisso.
Pra quê você vai compartilhar um post meu em que eu falo sobre dignidade para pessoas gordas sendo que essa é uma escolha minha, não é mesmo? Eu poderia me esforçar e emagrecer. Sem falar na saúde. Mas não, eu insisto em ser assim. Você já tá fazendo muito em me aceitar, oras.
Aliás, se eu digo tanto que me amo, porque me incomodam as pessoas que me atacam? Talvez meu amor próprio não seja tão suficiente assim, não é mesmo?
Sem dizer que você me aceita, mas daí a querer que você seja uma pessoa gorda já é demais. Você tem todo direito de ter PAVOR de engordar. E lá vem eu falar que é gordofobia? O fato de você se cuidar não significa que você não me ame. Por que eu não me cuido também? Eu já escrevi sobre isso aqui.
Mas, no final do dia, você se sente mal. O que você, pessoa magra, poderia fazer então, do alto do seu corpo aceitável e desejado, para que pessoas gordas sejam menos oprimidas? Você não quer e nem vai falar nada. Você já disse, esse não é seu lugar de fala. Não é seu problema. É só meu. E de quem insiste que é algo "normal" ser uma pessoa gorda.
Sem ironia, como eu posso ajudar?
Diariamente, vocês me questionam: como eu posso somar na luta antigordofobia? O primeiro passo é apoiar meu trabalho e meu conteúdo. Ler essa coluna já me ajuda. Mas você também pode fazer meus cursos - ou se não quiser fazer, doar uma bolsa para quem quer. Você pode também, a partir de R$ 2 por mês, apoiar meu conteúdo, sabendo que eu doo 30% do valor para outras pessoas que também produzem conteúdo na internet, especialmente mulheres, mães solo, pessoas pretas, indígenas, gordas, LGBTQIA .
"Ah, mas eu me sinto mal porque as pessoas me ouvem e não te ouvem". Mentira. Não se sente não. O que você não quer é ter que explicar o que é gordofobia. É abrir mão do seu privilégio. Você já invade meu espaço na disputa por trabalhos, por afetos, etc. Não é falando com pessoas magras que você vai me ofuscar.
Assim como pessoas brancas só ouvem pessoas brancas, pessoas magras só ouvem a si mesmas, logo, se você falar sobre gordofobia, vai, obviamente, ajudar a desconstruir. Se você questionar a largura e acessibilidade dos lugares que frequenta, as marcas de roupa que usa, os espaços de fala, os afetos.
Começa pelo básico. Chega na sua rodinha de amigos e pergunta: quem de vocês já namorou, publicamente uma pessoa gorda? Quantos amigos gordos vocês têm? Vocês já assistiram a série tal, que tem personagens gordas em situações não vexatórias? Você já leu livros com personagens gordas?
Que tal começar a fazer esses exercícios de leve?
Já pensou em não dizer pra pessoas gordas que você sabe como elas se sentem porque é uma pessoa gay, sendo que uma opressão em nada tem a ver com a outra?
Você pode evitar, por exemplo, frases como "fulano romantiza a obesidade" ou parar de pensar que estamos tentando "normalizar" ser gordos e forçando alguma situação. Você pode educar seu olhar e se acostumar com a nossa existência.
Porque é um fato: pessoas gordas vão existir, quer você queira, quer não. Tentar constrangê-las publicamente não vai fazer com que elas emagreçam ou deixem de existir. Só vai alimentar um ciclo de opressão, que é contra o qual eu tô lutando tão arduamente. Já pensou usar seu privilégio magro e me ajudar com isso? Bora!