Fazer “uma coisa de cada vez”! Em nosso país essa crença apoderou-se da inteligência de gente ilustre. Produziu consequências fortes em áreas tão diversas como economia, política e educação. Recorde-se a célebre sentença: “Primeiro, reorganizar a economia e voltar a crescer; em seguida, diminuir a desigualdade e redistribuir a renda; isso estabelecido, a sociedade estará pronta para a democracia”. Moral: o bolo cresceu, a redistribuição da riqueza não aconteceu e a democracia, como no samba do Chico Buarque, foi conquistada “apesar de você”! De modo semelhante, em educação há quem predique que o certo “é fazer uma coisa de cada vez”.
Era a década de 1950. No meu Grupo Escolar Barão de Macaúbas, na Capital, filho de médico, como eu, e filho de feirante estudavam juntos. Chegara a hora de prosseguir os estudos no “ginásio”. Havia curso de “admissão” porque as vagas eram insuficientes. Selecionava-se. Na Capital, o “ginasial” em escola estadual era para poucos. Pobres? Do lado de fora. Naquele tempo, “era uma classe social de cada vez”. Primeiro, grupo escolar para todos somente nas cidades; décadas adiante, ginásio para poucos e somente nas cidades; o “científico” ou o “normal” somente para os filhos das elites educadas, salvo exceções, em colégios particulares.
Na tardia década de 1990 conquistamos a universalização do ensino fundamental. Em Minas, simultaneamente também do ensino médio. Nas duas décadas seguintes, mais equidade inclusiva no país: universalização do pré-escolar e do ensino médio, inclusão dos deficientes, ampliação do acesso a cursos superiores (18% da população de 18 a 24 anos de idade e maioria de estudantes pretos e pardos).
Contudo, nem tanta equidade assim se praticou: do orçamento anual do Ministério da Educação, 60% são destinados a universidades federais e seus dois milhões de alunos, enquanto os 40% restantes são destinados a 40 milhões de alunos da educação básica pública! Ampliamos a democracia. Praticamos o republicanismo igualitário? Mais uma vez, uma coisa de cada vez. Mais uma vez, quem pode mais, leva mais. Paradoxo: alcançamos a inclusão, uma promessa da democracia, e amesquinhamos a República.
Estamos encerrando um ciclo de desafio educacional, o da inclusão. Ciclo? Quer dizer que necessariamente advirá um sucessor, um novo ciclo dessa feita com enfoque na qualidade? Acostumamos a considerar sensata a noção de sucessão. A previsibilidade conforta. O conformismo social protege o espírito contra as inquietações do provável, logo um tanto incerto. Afinal, lidar com a complexidade e a simultaneidade ao invés de “uma coisa de cada vez” é lidar com a incerteza. Reformas fortes geram conflitos e incerteza.
Na democracia, tensões clamam por resoluções, por uma nova “equilibração”. Por exemplo, o conflito redistributivo: aplicar dinheiro público ao mesmo tempo em inclusão e em qualidade na educação básica significa injetar-lhe recursos adicionais transferidos de algum lugar. Por que não exigirmos que o MEC aplique 50% do seu orçamento nas universidades e 50% na educação básica pública? Continuamos a reproduzir o velho tipo de escolha conservadora prevalente. Resultado: a desigualdade não recua. Na prática o fato que fica é que “quem pode mais, leva mais” e para que assim continue, “uma coisa de cada vez”, ao invés de praticar justiça como equidade."O alto aprendizado precisa vir a ser um bem público disponível para todos alunos independentemente de classe social e de outros fatores de desigualdade"
A transmissão sobre as melhores práticas e o conhecimento sistematizado com base em laboriosas pesquisas empíricas comparadas dizem que fatores são decisivos para que altos resultados sejam alcançáveis e previsíveis. Com pesos ponderados distintos, tais fatores são causas eficientes ou intervenientes de alta proficiência dos alunos. Portanto, em educação não há lugar algum para “uma coisa de cada vez”. O alto aprendizado precisa vir a ser um bem público disponível para todos alunos independentemente de classe social e de outros fatores de desigualdade. A escola que internaliza tal compromisso faz a diferença: razoavelmente neutraliza os fatores “externos” de desigualdade e equaliza as oportunidades. Nela, ao invés de desigualdades no aprendizado, há apenas diferenças.
Que fatores são esses e que impactos produzem na escola? Estabelecer como padrão nacional o currículo que todos os alunos precisam aprender e saber fazer. Um padrão responde a duas perguntas: “O que os alunos precisam aprender (objetivo)?” e “Quão bem precisam aprender e saber fazer?” Selecionar pelo mérito e continuar a formar os gestores em serviço é um fator de alto impacto e que no curto prazo produz efeitos em cascata. Tornar a seleção de professores difícil, selecionar os melhores, assegurar-lhes a formação continuada em serviço segundo aquele padrão, propiciar o mestrado e garantir a progressão em uma carreira pelo mérito, têm alto impacto e produzem efeitos fortes no aprendizado.
Logo, professores cumprem planos de aulas, os gestores monitoram as ações e executam as boas rotinas da instituição, como o controle severo da falta ao trabalho. Formar expectativas de alto aprendizado de todos os alunos entre os dirigentes escolares, professores, os próprios alunos e os pais. Altas expectativas compartilhadas razoavelmente predispõem à confiança mútua, favorecendo o bom “clima escolar”, a reciprocidade, a cooperação ampla e a boa coordenação das ações.
Diálogo do diretor com o professor e com o aluno. Cooperação forte entre secretaria de educação e escola. Cooperação entre níveis de governo também impacta positivamente. Organizar e fortalecer os conselhos escolares. Escola que incrementalmente apresenta bons resultados conquista a confiança dos pais. Daí advém uma disposição a cooperar e participar.
Se o impossível é apenas o que ainda não foi experimentado, em 2020 vamos fazer dar voz e vez nas escolas à utopia de que um mundo melhor é possível.