De Brasília a Rondônia, a extrema-direita no poder e seguidores denunciam que um espectro ameaça a ordem e a virtude: o espectro do comunismo! Para combatê-lo, desejam impor a “ordem da ameaça”. Em tempos sombrios, quando a ameaça à democracia proveniente do próprio poder político encontra ressonância em parcela da opinião pública, a refutação do discurso da ameaça pelo discurso da razão argumentativa e pela resistência da sociedade civil precisariam ampliar a “voz”, perseverar e convencer. Onde está aquela potente e admirável sociedade civil que, sob a ditadura, ergueu a sua voz na década de 1970? Por que o silêncio dos reitores, da SBPC, da Academia Brasileira de Ciência, da Academia Brasileira de Letras, da CNBB diante da ameaça, patente na voz do próprio presidente e do ministro da educação?
O movimento Escola Sem Partido irrompeu de uma farsa, criada para dar vida a um espectro: o espectro do comunismo. Afinal, é fato estabelecido que, como quiseram a História e as escolhas humanas, a utopia igualitária comunista ruiu nos acontecimentos de 1989 a 1991, o fim do socialismo real e o desaparecimento da União Soviética. No Brasil, o velho PCB desapareceu e o PCdoB exibe existência apenas inercial, destituído de qualquer paixão. A utopia igualitária de Marx e Engels, enunciada no Manifesto do Partido Comunista (1848), resultou historicamente, a partir do leninismo, em uma distopia totalitária e em desencantamento do mundo.
Por sua vez, incapaz de encantar, a extrema-direita brasileira fixou-se em um par de paixões: o ódio e o totalitarismo. Ódio ao espírito livre, à imprensa livre, ao livro e à cultura. Seu desejo constante é a destruição do outro, do divergente. Para a extrema-direita bolsonarista a democracia é mera oportunidade tática para ascender ao poder. Sua ideia ideológica de justiça é da ordem tribal da vingança. A Escola Sem Partido é dessa ordem de baixas e violentas paixões.
Não é a primeira vez que se procura projetar a escola pública no redemoinho da desorientação e da inquietação do espírito. A primeira tentativa fez sua única e frágil aparição há 40 anos, antes de 1989. A segunda, agora. Cada uma a seu modo e em sua época acusou a escola pública de funcionar como “aparelho ideológico” a serviço de algum mal. A primeira dizia que a escola era um tipo de “aparelho ideológico de Estado”, uma espécie de “funcionária” da ordem capitalista. Inteligentes, à época, em grande maioria os professores não seguiram os “intelectuais orgânicos” e sua prodigiosa luta ideológica do bem contra o mal. Hoje, o discurso da “ordem da ameaça” intenciona atemorizar e submeter a escola pública a seus desígnios. Acusa-a de encorajar professores que teriam como projeto utilizar a escola como “aparelho ideológico de partido”.
A Escola Sem Partido supõe que um mal ronda a educação: a doutrinação dos alunos por professores marxistas. Ora, se há doutrinação, necessariamente há os doutrináveis, apontados como indefesos, frágeis e manipuláveis diante da astúcia do mal. Se há na escola um império da doutrinação é porque nela não haveria lugar, voz e vez para o diálogo, o contraditório, a refutação, a contra-argumentação, embora a escola, uma instituição pluralista, tenha diretor, equipe gestora, diversidade humana de professores com distintas visões de mundo, de valores, orientações, estilos. Para que o pressuposto adquira as vestes de um argumento, todo aluno é necessariamente representado como um cérebro semelhante a uma folha em branco, na qual, sem resistência, o doutrinador irá fixar sua doutrina. O aluno é visto como um espectro sem vontade própria e capacidades.
Os adeptos do “Escola Sem Partido” desejam com esse movimento precisamente o que?
O seu ideal de escola é a escola militarizada. Não sendo possível militarizar todas, daí a “Escola Sem Partido”. Admite a escola civil, mas deseja aprisioná-la psiquicamente em uma situação neurótica de desconfiança de todos contra todos, e disseminar intolerância, censura e autocensura. Primeiro, incentiva a desconfiança dos pais e dos alunos contra os professores; segundo, incentiva a delação. Resultado: um estado psíquico de desconfiança generalizada no interior da escola. Se um mal ronda a escola e a ameaça, então, o preço a pagar é a eterna desconfiança até se obter a exclusão do divergente. Representa e é, em ato, uma ameaça à liberdade de pensar, à liberdade de opinião, à pluralidade da vida. É um ataque virulento contra os valores universais da democracia.
Para o “Escola Sem Partido” o diretor ideal é o censor. O professor ideal, o que contra si próprio impõe a autocensura, um carcereiro da própria consciência. O aluno ideal, o que desconfia do professor, disposto a apontá-lo como transgressor, semelhante ao adolescente dedo-duro que, sob o nazismo, denunciava o próprio pai. Por isso, o “Escola sem Partido” guarda notável semelhança com as Górgonas, os monstros mitológicos com aparência feminina e garras. Medusa é a mais célebre delas. Quer criminalizar o pensamento livre, restabelecer o “crime de opinião”, “o crime de consciência”, procedimento típico de qualquer ditadura, de direita e de esquerda. O “Escola Sem Partido” é uma chocadeira ideológica e psíquica do ovo da serpente do totalitarismo. Fraude ideológica e farsa.
Eis o mal que verdadeiramente ronda e ameaça a coesão e o próprio trabalho na escola pública brasileira: a Pedagogia da Medusa (quem a encara, vira pedra). O propósito é o de impor, como neurose coletiva, um estado psíquico de desconfiança generalizada do outro em lugar da confiança mútua. Ao anular o outro, era uma vez a amizade. Nem a ditadura militar chegou a tanto! É um desejo demoníaco de ver triunfar a miséria da razão. É o elogio da mediocridade e da perversidade. Se triunfasse, à entrada de cada escola pública leríamos a sentença que encima a porta do inferno: “Deixai toda esperança, vós que entrais”.