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O 'tigre de papel' e o novo coronavírus desnudam a nossa história

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Tigre de papel é uma expressão chinesa. Também é chinesa a origem do novo coronavírus. Contudo, vírus não tem territorialidade, nacionalidade. É planetário. Portanto, não há um “vírus chinês”. Exemplo disso é a tão impropriamente denominada “gripe espanhola”, de 1918, que matou de 50 a 100 milhões de pessoas. Ela irrompeu nos Estados Unidos, até tomar conta do planeta. Era o final da 1ª Grande Guerra. Foi avassaladora e devastadora entre os soldados de regresso aos seus países de origem. Expandiu-se mortalmente entre as populações nacionais.



Com a diferença de quase dois séculos, Estados Unidos e China fizeram duas revoluções. A primeira, a Revolução Americana de 1776, fundou a democracia moderna, como até hoje a conhecemos. Consolidou-se. Hoje, a democracia é um modo de viver e de resolver tensões que, além do Ocidente desenvolvido, encontrou solo fértil nas Américas, na África e na Ásia. É um valor universal.

Na China, a Revolução de 1949, liderada por Mao Tsé-Tung e pelo Partido Comunista, de início anti-imperialista e de luta pela independência nacional, uma vez no poder, passou ao socialismo. Em nome da igualdade, dispensou a liberdade. Em nome do socialismo, proibiu a iniciativa privada. Em seus escritos o líder chinês muito utilizou a expressão “tigre de papel” para indicar ao povo que o imperialismo neocolonial de ocupação territorial, o japonês e o praticado por cinco potências capitalistas ocidentais, não era invencível.

Três décadas adiante, a China tornou-se, além de uma grande nação, uma potência econômica industrial, tecnológica, comercial e financeira. No ano de 1970, o PIB da China e do Brasil eram idênticos. Cinquenta anos mais tarde, o PIB chinês é de US$ 10 trilhões e o do Brasil, US$ 1,8 trilhão. Destino? Não: escolhas!

No ano de 1800, o PIB dos Estados Unidos era idêntico ao do Brasil. Hoje, supera os US$ 20 trilhões, o dobro do chinês. Destino? No século 19 os Estados Unidos fizeram em seu país uma revolução na revolução. Aboliram a escravidão ao preço de um Guerra Civil e realizaram a maior reforma agrária da história humana. Os americanos fundaram seu país após vencerem o colonialismo inglês. Para ocuparem o gigantesco território, abriram as terras aos imigrantes e dela fizeram uma espécie de “terra prometida”. Daí a notável expansão do capitalismo no país e o maior mercado econômico interno.



No Século 20, durante a 2ª Grande Guerra, os chineses livraram-se da dominação japonesa, que ocupou parte do seu território por mais de 30 anos. Antes, haviam se livrado da chamada dominação estrangeira das cinco potências ocidentais europeias. De certa forma os chineses tiveram razão ao comparar as potências imperialistas com um tigre de papel. Fixaram-se como nação independente. Venceram e gradualmente passaram do socialismo com pobreza e fome a um tipo bem singular de capitalismo globalizado combinado com capitalismo de Estado e uma poderosa burocracia e tecnocracia, técnica, hierárquica, disciplinada, coletivista, de matriz cultural e filosófica confuciana, uma cultura proveniente da China imperial antiga. O partido único na China abriga, de fato, uma elite governamental confuciana, autoritária e pragmática.

Com a queda do muro de Berlim e o colapso mundial do chamado “socialismo real”, em 1989, a China manteve-se e deu curso a uma das mais interessantes transformações econômicas e sociais contemporâneas, de tipo pós-comunista. Isso, após a morte de Mao Tsé-Tung. Os líderes chineses já não são comunistas há tempos. O país possui uma classe empresarial poderosa e uma vastíssima e crescente classe média urbana, uma classe operária urbano-industrial e um vasto campesinato. Eliminou a miséria e a pobreza absoluta, que o anterior regime comunista de Mao Tsé-Tung só fizera expandir. Na China, após a morte de Mao, Confúcio e o capitalismo sepultaram o comunismo maoísta, sem ruptura aparente.

Na década de 1960 e em especial no ano de 1968, o socialismo cubano e o chinês desfrutaram de grande prestígio, por sua grande atratividade discursiva e ideológica, entre grande parte dos jovens universitários da América Latina. A sintaxe ou a linguagem das duas revoluções foi por eles assimilada, junto com os respectivos “modelos” de revolução. No ano de 1968, a esquerda revolucionária brasileira dividia-se basicamente entre o guevarismo e o maoísmo.



Guevaristas eram os seguidores da visão de Ernesto Che Guevara sobre a Revolução Cubana. Segundo Guevara, uma vanguarda armada guerrilheira tudo podia, pois, estabelecera, a guerrilha faz a vanguarda e a vanguarda faz a revolução. Seria até mesmo capaz de derrotar as ditaduras civil-militares latino-americanas e, com elas, o “imperialismo” norte-americano. O sonho da imaginação dava, então, como certo que o “imperialismo” era a última etapa do capitalismo e que se aproximava a chamada crise catastrófica e global do sistema. A estratégia revolucionária a ser adotada era o cerco revolucionário do capitalismo central pela revolução permanente no Terceiro Mundo, o elo mais frágil da cadeia de dominação.
Por sua vez, o maoísmo sustentava a tese da prévia organização de uma aliança operário-camponesa sob a direção do partido comunista. Propunha a revolução como um cerco da cidade pelo campo, em uma revolução por etapas, envolvendo ação política e alianças, mais hegemonia. O guevarismo defendia o “comando da política pelo fuzil”; o maoísmo, o “comando do fuzil pela política”. Foram derrotados ao mesmo tempo em toda América Latina. O “imperialismo” e as suas “ditaduras funcionárias” eram, para ambos, um “tigre de papel”, que os liquidou militarmente em combate tão desigual.

O colapso do “socialismo real” e suas proverbiais ditaduras, em 1989, e a queda da URSS, em 1991, evidenciaram que, o “tigre de papel”, na ocasião, o capitalismo com democracia, triunfara globalmente sobre a revolução permanente de Guevara e o maoísmo. A democracia, a grande vitoriosa, triunfara em toda América Latina ao pôr abaixo, em uma década, de 1980 a 1990, o ciclo das ditaduras militares e seu delírio de uma contrarrevolução permanente.



Hoje, em tempo sombrio da pandemia do novo coronavírus, essa crônica sobre utopias que se transformaram em distopias autoritárias e sobre os usos da expressão “tigre de papel” parece adequada para retirar do esquecimento a célebre expressão chinesa. Pois enquanto o mundo converge no combate à pandemia como um inimigo devastador, invisível, altamente contagioso e de alta letalidade, além de ainda tão desconhecido, decidido a aplicar, em larga escala, ou o “lockdown” (Alemanha, por exemplo) ou o isolamento social prolongado e sucessivamente renovado como estratégias eficazes de contenção da velocidade de expansão do contágio, aqui, no Brasil, o presidente Jair Messias Bolsonaro insiste e persiste em afirmar e reafirmar que a Covid 19, uma “gripezinha” (fevereiro), “já está indo embora” (abril), precisamente quando a epidemia está no meio de nós em situação de crescimento quase exponencial.

Provavelmente assim será até junho. Como se comprova, o novo coronavírus ou, como quer Bolsonaro, o novo “tigre de papel” não poderia encontrar em todo o mundo um aliado preferencial tão solidário. Como se vê, o vírus guarda forte semelhança com as ditaduras: arrebata ou assalta o poder “pelo alto” para melhor exercer a sua potência destrutiva ao espalhar dor, angústia, sofrimento e morte. O presidente parece possuído por um vírus vindo das trevas, uma cepa que somente sobrevive em um ambiente de produção e de caça incessante a inimigos internos: o ódio, que move a contrarrevolução permanente do bolsonarismo no poder. Ah, esse vírus não é brasileiro! Vacina: mais democracia.