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Bolsonaro e a exaltação do poder dos generais

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A entrevista coletiva de 22 de abril, quarta-feira, do comitê interministerial de gestão da crise, no Palácio do Planalto, presidido pelo ministro-chefe da Casa Civil, general de Exército Braga Netto, gerou gêmeos: a condenação da gestão e da estratégia de distanciamento social do ex-ministro Mandetta e a magnificação da presença dos generais no poder consorciado, como desejado pelo presidente Bolsonaro. O médico oncologista Nelson Treich, com histórico de bom gestor, assumiu riscos: sugerir que a gestão Mandetta foi ineficiente e alinhar-se com o presidente na defesa, ainda que cuidadosa, da flexibilização “customizada” do isolamento social.

Contudo, virtuosamente também alinhou-se aos governadores e aos prefeitos, que, em última instância, decidirão sobre o modo de proceder a flexibilização ou a volta gradual à normalidade, desde que observadas regras epidemiológicas vinculatórias de validade geral. Ganhou currículo; poderá ou não engrandecer a biografia. Provavelmente por pragmatismo, acomodou-se, de início, em uma desconfortável situação de “tutela” militar. Afinal, patentemente formou-se ao redor do ministério da Saúde um cordão sanitário-tutelar de generais: Braga Netto, o quatro estrelas em evidente ascensão, o almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos e incumbido pelo presidente de assistir a transição de comando no ministério da Saúde, e o novo secretário-executivo da pasta, o general Eduardo Pazuello, comandante da 12ª Região Militar, em Manaus.

Tutela ou não, o arranjo civil-militar no comando compartilhado da Saúde e da gestão da crise provocada pela epidemia é, para todos os envolvidos, uma faca de dois gumes: se a gestão for bem sucedida e a transição do isolamento à normalidade ou fim da quarentena (volta de atividades econômicas, maior circulação social e espacial de pessoas), os méritos serão compartilhados e presenciaremos uma inequívoca ascensão do ministro; de outra parte, se falhar e isso implicar o retorno à quarentena, não seria improvável o presidente depositar o ônus na conta, nesse caso deficitária, do novo ministro. É da natureza do presidente. Seja como for, assumir o ministério no olho do furacão da crise é um ato de coragem moral do ministro.

No 21 de abril, em curiosa inversão protocolar e cerimonial na liturgia do cargo, Bolsonaro fez questão de tornar pública a visita do presidente ao general de divisão Eduardo Pazuello, que se encontrava hospedado no hotel de trânsito de oficiais do Exército, em Brasília. Sem a presença do ministro da Saúde, o presidente fez questão de anunciar que indicaria ao ministro o nome do general para a posição de número 2 ou secretário-executivo do ministério da Saúde. Presidente não indica alguém para a ocupação de cargo; decide. Entrevistado, por sua vez o já sacramentado secretário-executivo, um prestigiado general, especialista em logística, anunciou que tem equipe e que a levaria para o ministério. O ministro teria ficado menor que o cargo? Dependerá somente dele manter-se à altura e até mesmo elevar-se.


Da entrevista do ministro extraio passagem preocupante, que clama por esclarecimentos precisos: “Se tem que ter 70% em contato com a doença para que seja imune, e a vacina levar um ano, e (sem) crescimento explosivo, é impossível o país sobreviver parado”. A ressalva do “(sem) crescimento explosivo” não obscurece o fato de que o discurso da estratégia a ser seguida, condensada nessa fala, patentemente designa o alinhamento ministerial com o discurso do presidente Bolsonaro, empenhado em forçar a “imunidade de manada” pela generalização do contágio. Prudente, o ministro apartou-se do desvario presidencial ao insistir nas parcerias com governadores e prefeitos, na customização e no monitoramento sustentado em indicadores rigorosos. A propósito, o profissional Teich, sabe-se, é muito bom em processamento e análise comparada de dados e no desenho de padrões.

O 22 de abril foi triunfal para o presidente. No ano passado, após demitir o ministro Bebbiano, ex-coordenador nacional da campanha de Bolsonaro à presidência e ex-primeiro-amigo, seguiu-se a diminuição de tamanho do ministro Sérgio Moro, suspeito e acusado pelo “gabinete do ódio” parental de cobiçar a candidatura à presidência. Tempestuosamente, o gabinete parental do presidente empenhou-se em desprestigiar o vice-presidente e general de Exército, Hamilton Mourão, acusado pelos filhos de conspirar para tomar o lugar do presidente. De tumulto em tumulto na vida palaciana e governativa, no ano passado o presidente defenestrou dois respeitados generais. Na Praça dos Três Poderes, o diabo andou solto no redemoinho: Bolsonaro versus Congresso Nacional e Bolsonaro versus STF, ao tempo em que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, garantia, apesar do desgoverno político, a aprovação da reforma trabalhista e da reforma da previdência. A agenda reformista ocupara o proscênio. Nesse ano de 2020, seguiu-se a demissão do ministro Mandetta. Pelos seus méritos, Mandetta adquirira inesperado e alto protagonismo político e administrativo, com visibilidade nacional e altíssima popularidade. O segundo “Moro”? Pior: com maior popularidade e visibilidade? Tudo que Bolsonaro não quer perto de si. A demissão pôs abaixo o protagonismo.

Nesse 22 de abril passado o presidente matou dois coelhos com uma só cajadada. Primeiro, resolveu a transição consorciada civil-militar no ministério da Saúde. O abate do outro coelho atingiu o poder até então antediluviano do ex-superministro da Economia, Paulo Guedes. Com efeito, ao emular o ex-presidente Médici o presidente Bolsonaro atribuiu à Casa Civil, incumbida de coordenar o conjunto de ministérios, o que em tempos pré-crise seria mais uma atribuição de Guedes: o projeto “Pró-Brasil: Ordem e Progresso”. Evoca o “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Se não cumprir as promessas que faz, ficaria conhecido como o “PAC-3”, criatura da ex-presidente Dilma Rousseff.


Aliás, ela e Lula não ocultaram certa admiração pelo ex-presidente Ernesto Geisel. Por falar em Geisel, à época o general-presidente constrangeu o então superministro da Fazenda, engenheiro, economista, banqueiro, matemático de excelência, culto e apaixonado por óperas, Mário Henrique Simonsen, que assistiu brilhar a estrela ascendente do ministro do Desenvolvimento, João Paulo dos Reis Velloso, autor e responsável-executivo dos planos nacionais de desenvolvimento (PND I e II), de fortíssimo investimento estatal na economia e de aposta em um capitalismo de estado combinado com forte presença do capital estrangeiro e privado, sustentado por endividamento externo. A diferença é que o Reis Velloso atual, no governo Bolsonaro, é uma estrela ascendente de quatro estrelas nos ombros, o general-de-Exército Braga Netto e o mais prestigiado ministro do governo. Rapidamente eclipsou o general Ramos, que até agora não se sabe exatamente a que veio. Portanto, fica um fato irrevogável: era uma vez o alto protagonismo do senhor AI-5 e de sua excelência “empregada doméstica gastando dólar na Disneylândia”, Paulo Guedes. O alinhamento obsequioso do ministro Guedes ao discurso ultrarreacionário do “gabinete do ódio”, pró-AI-5, não lhe rendeu prestígio. Antes, sugeriu ambição ... e desconfianças. Foi reduzido ao tamanho do cargo de ministro da Economia. Errou feio ao abri artilharia sem infantaria contra o “Pró-Brasil”.

O Projeto “Pró-Brasil: Ordem e Progresso” tem o propósito de, ao invés de administrar a crise econômica, um dos papeis do ministério da Economia, planejar e administrar a retomada do crescimento, além de administrar a “questão social”. O escopo, ambicioso, é, de fato, assunto interministerial. PAC-3 ou não, o fato que fica é que governo nas cordas vira “pato manco”. O “Pró-Brasil” é um movimento tático de protagonismo focado em investimento e emprego para gerar protagonismo governamental. Faz sentido. Contribui para a edição simbólica de uma “agenda positiva”.

Intuição, ensaio e erro ou estratégia de Bolsonaro? Dessa vez, estratégia, estratégia de permanência no poder. Golpe à vista? Não. Nem os generais palacianos, nem o Exército e as Forças Armadas não marchariam ao abismo. Incorrigível, Bolsonaro é o senhor confrontação, radicalização, crise e incerteza. Como aposta na radicalização e na bipolarização, convém-lhe, muito, a companhia militar. Oferece-lhe prestígio, empresta-lhe credibilidade, pratica contenção dos excessos e agrega-lhe capital simbólico para ambicionar a reeleição. Bolsonaro e tutela não combinam, vez que, de psiquismo algo paranoico, na tutela veria conspiração. Quer subordinação. Espera adesão e subordinação, confiando no legalismo e no constitucionalismo dos militares e nos valores organizacionais de disciplina, hierarquia e camaradagem, isentos de propósito conspiratório. Preferencialmente, quer alcançar a cooptação. Afinal, a visão de mundo presidencial é crepuscular. Para ele, a democracia é oportunidade tática, eventualmente descartável. Fica a torcida para que Braga Netto e o prestigiado e prudente ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, sigam as suas convicções constitucionalistas e para que não ocorra a simbiose governo-Forças Armadas, desejada pelo presidente Bolsonaro, que as imagina instituições de governo, ao invés de Estado.


Seja como for, fundamental é o fortalecimento institucional do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e a reorganização da sociedade civil. Vem ao caso a referência à sociedade civil. Ainda que fragilizadas, as seis centrais sindicais brasileiras uniram-se na celebração do 1º de Maio, Dia do Trabalhador. Convidaram as esquerdas e foram muito além: convidaram os presidentes da Câmara e do Senado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e até o “centrão”. Torço para que as esquerdas tenham descoberto que o fortalecimento da democracia é obra de todos os democratas, das esquerdas à centro-direita civilizada.

No 22 de abril, após receber líderes partidários ligados ao chamado “centrão”, que o presidente tanto combateu, acusou de possuir natureza constitutivamente corrupta e de expressar a degenerada “velha política”, dessa vez recebeu palacianamente a quinta essência da “velha política”, o MDB de sempre, aquele mesmo que governou com FHC, Lula I e II, Dilma I e II e, em seu próprio nome, com Temer. Ele se pensa como o virtuoso que alia-se ao diabo para melhor combater o novo “demônio”: o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Contudo, quem sabe esteja experimentando uma transição da “ferocia” ou sua natureza ao camaleão? Em Bolsonaro, isso seria o mesmo que assumir uma segunda natureza. Doravante teremos um governo bifronte: “ferocia” e camaleão alternando-se e combinando-se, ou, por outras palavras, “nova política” mais ódio e “velha política” em uma só pessoa e governo.

Que o camaleão triunfe sobre a “ferocia”!