Jornal Estado de Minas

A vida em tempos de pandemia. E depois?


A epidemia de SARS-CoV-2 é a terceira grande epidemia de coronavírus neste século, após a de SARS (síndrome aguda respiratória grave) de 2002-2003 e a de MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), que começou em 2012. Os coronavírus espalham-se todos os anos, causando infecções respiratórias que vão desde o resfriado comum até pneumonia.


A vacina para o SARS-CoV-2 ou o novo coronavírus deverá estar disponível até o final desse ano. Contudo, não se sabe se ela assegurará a desejada imunidade vitalícia. Estima-se, ao contrário, que a cada dois anos os humanos deverão revacinar-se contra esse vírus tão altamente contagioso e de maior letalidade que os que causaram as epidemias precedentes. A propósito, ano a ano, vacinamos contra o H1N1 (influenza).

Não bastasse, os coronavírus poderão nos surpreender com o que poderá vir a ser o SARS-CoV-3! Ou seja, por força da “história natural” dessa linhagem de vírus, a presente pandemia parece assinalar que os humanos estão condenados a conviver com variações mais ou menos agressivas desses inimigos invisíveis.

Não culpemos os morcegos, as galinhas, as aves migratórias e outros bichos. Antes, precisamos olhar para dentro de nós mesmos e as escolhas que estamos fazendo em cada país e globalmente, seja na relação com o meio ambiente, seja no que concerne às nossas escolhas e decisões sobre bem-estar e economia. Políticas públicas com enfoque em bem-estar social precisam integrar compromissos com saneamento básico 100%, organização de sistemas nacionais de saúde de cobertura universal, educação básica de qualidade para todos pelo menos até o ensino médio, proteção e cuidados com os idosos e política de renda mínima universal. Tudo isso ao mesmo tempo. Custa caro? Decerto.



Contudo, bem menos do que o Estado desembolsa, como agora, em situação de pandemia. Além de preservar vidas, prevenir e conter os impactos do contágio, deverá garantir um bem público que daqui em diante deverá dar as mãos à liberdade como aspirações primeiras da condição humana: segurança no sentido do direito à vida, e segurança em liberdade. Essa parece ser a questão. Ao invés da condenação à natureza, que, antes de tudo, é vida e não dispõe do dom da intencionalidade, e ao invés da ideológica falsa discussão sobre “estado mínimo” versus “estado máximo”, simplesmente estado de bem-estar democrático e de compromisso com a vida e o desenvolvimento. Que, aliás, inclui o crescimento econômico e a racionalidade fiscal. Inclui, sem a isso se resumir.



Em tempos sombrios, a escuridão reivindica a voz. Voz cavernosa, apocalíptica, anunciando que em tempos de recorrência de epidemias, desemprego tecnológico, incertezas e inquietação, o preço da segurança é o maior sacrifício das liberdades. A começar do sacrifício da liberdade de imprensa, como querem, por exemplo, Trump, Bolsonaro, Erdogan, Putin, Orbán e Ortega.

Pelo menos uma coisa é, senão certa, pelo menos altamente provável: nada será como antes no que diz respeito ao êxito prático da ideologia da exclusão de direitos que procura naturalizar as desigualdades ao impor como política de Estado e de governos o discurso ideológico do Estado mínimo. O pensador, filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio ensina: o ataque ao estado do bem-estar social é um ataque à própria democracia. Viola o bem mais precioso da alma humana: o senso de dignidade e o senso de pertencimento social.



Distante do capitalismo de estado, provavelmente caminharemos na direção de capitalismo com automação e inteligência artificial, combinado com políticas públicas socialistas, fortalecimento da democracia e sustentabilidade ambiental. Por outras palavras, socialdemocracia sem medo do bem-estar social, pois a velha socialdemocracia do pós-guerra acabou ideologicamente capturada pelo discurso ultraliberal da contenção. Utopia? Não. Incitação à luta política e cultural por mais democracia.

Isso tem custo alto. De onde virá o dinheiro? No caso do Brasil, da tributação de dividendos, da elevação do imposto de renda dos mais ricos (pessoa física) com alíquotas de até 40%, revisão do sistema de isenções tributárias, revisão tributária da pejotização (lucro presumido e outros mecanismos de evasão e injustiça fiscal hoje legalizados), e da tributação sobre heranças. Socialismo? Os Estados Unidos e a União Europeia já praticam isso há muito tempo.

Caminharemos, também, em escala global, para um capitalismo tecnologicamente avançado, combinado com uma notável expansão do empreendedorismo das micro, pequenas e médias empresas. Observaremos uma ruralização das cidades e uma urbanização dos campos em razão de deslocamentos impulsionados pela busca de emprego, renda e empreendedorismo. Também devido ao medo da morte. Haverá um retorno, com qualificação, ao artesanato. Haverá muita troca simples, não monetária, ao lado do crédito barato, sinal, também, de uma redescoberta do gosto de conviver.



O custo do crédito deverá cair notavelmente, aproximando-se do patamar dos países desenvolvidos. Desemprego e risco de fome deverão ser enfrentados também com política pública universal de renda mínima e com forte aporte ao microcrédito concedido a grupos de empreendedores pobres, agrupados. O combate à pobreza deverá alcançar a mesma prioridade que o combate a uma epidemia como a atual. O gasto público estatal deverá subordinar-se à disciplina de metas de bem-estar fortemente consensuais, como a meta de saneamento 100% em 10 anos, por exemplo.

Desenvolvimento deverá ser compreendido por cada criança como crescimento da produtividade, educação de qualidade para todos, saúde pública de qualidade para todos, sustentabilidade ambiental, democracia e nenhuma tolerância com a formação e sustentação de castas burocráticas de estado sustentadas por privilégios. Essa é uma forma inaceitável de acumulação primitiva de capital às custas do aumento da pobreza, é uma forma de neopatrimonialismo. É quase um roubo. Estamos nos tornando uma sociedade de castas estatais, de estamentos de privilegiados bancados com dinheiro público. Essa precisa vir a ser a orientação geral civilizatória. Caso contrário seremos uma nação fragmentada.

Quem serão os atores sociais responsáveis por essas mudanças? Em parte, as próprias elites em circulação e as novas elites republicanas emergentes. A força propulsora virá dos jovens. Precisaremos de um novo Maio de 1968, do protesto para mudar? Mil novecentos e sessenta e oito produziu o feminismo, a afirmação das identidades de cor, gênero, orientação sexual, ações coletivas de causa única, sem uma visão totalizadora. Ampliou a tolerância. Não produziu mudança política e viu, menos de uma década após, encolher o estado do bem-estar social. Já não dispomos da clássica luta de classes, responsável, enquanto existiu, por mais democracia e capitalismo, ampliação da igualdade e progresso civilizatório. Fragilizada, deu lugar à distopia do neoliberalismo ensandecido, hoje com as suas veias e vísceras do egoísmo extremo expostas. Saudades das lutas de classe, que já não há. Daí, a esperança no protagonismo da juventude.



Um ponto de inflexão notável a ser observado após a pandemia deverá ser, nos Estados Unidos da América, a conversão da sociedade e das elites à aceitação e criação de um sistema nacional de saúde pública, semelhante ao inglês. Para o conservadorismo, isso é o mesmo que “socialismo”. Não, não é. É capitalismo e democracia com política pública socialista na saúde. Afinal, depois que a pandemia passou a produzir por dia mais mortos que o total de mortos do 11 de Setembro de 2001, nem tudo que antes era sólido, permanecerá.