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Notas sobre o bolsonarismo no poder: para onde vamos?

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O triunfalismo poderá causar a miséria do bolsonarismo. A vitória eleitoral do presidente foi triunfal, de fato. Pois no início era o “verbo” de um candidato solitário, sem voz na sociedade, sem um grupo parlamentar de apoio. Partidos negavam-lhe a legenda. O PSL o abrigou. Sem um programa de governo, intuitivamente dirigiu três apelos ao eleitor: 

- semelhante a Jânio Quadros, em 1960, o combate sem trégua à corrupção, e, em gesto para atrair eleitoralmente para si o prestígio incomparável do então juiz Sérgio Moro, prometeu todo apoio à Operação Lava Jato. Depositou a corrupção sobre os ombros do “sistema”, que “aí está”, e assumiu a bandeira de um antipetismo redentor;
- no campo dos valores, a família, ameaçada pela modernidade e a secularização, “deus acima de tudo”, e o discurso contra: o aborto, a “ideologia de gênero”, o casamento entre homossexuais; - descrevendo um deslocamento de 180 graus, abdicou da preferência pelo capitalismo de estado e assumiu compromisso com o ultraliberalismo econômico, na linhagem do “estado mínimo”: privatizações, responsabilidade fiscal, reformas: previdenciária, trabalhista, administrativa e tributária, manutenção do teto de gastos. 



Com a explosão de votos que o então candidato a presidente atraiu, o pequeno e inexpressivo partido que o acolhera, agigantou-se. Elegeu 56 deputados federais, entre eles a fina flor do bolsonarismo ideológico e militante ou “de raiz”. O presidente e os filhos, o vereador Carlos Bolsonaro, o deputado federal eleito Eduardo Bolsonaro, e o senador eleito Flávio Bolsonaro, imaginaram-se com direitos naturais ao controle total do agigantado partido detentor da maior bancada de deputados federais. A direção do PSL reagiu, contraditou, enfrentou e conteve a investida conduzida pelo clã dos Bolsonaro.

Seguiu-se a ruptura, as perdas e danos inclusive de expressivos deputados federais que logo passaram à oposição ao governo, distribuídos entre o PSL e alguns outros partidos. Por sua vez, em ostensivo desprezo e abdicação de qualquer possibilidade de negociação com blocos partidários ou com partidos políticos, um a um, o bolsonarismo parlamentar buscou e recolheu apoios difusos e instáveis em bancadas temáticas, como as ultrarreacionárias “bancada da bala”, “ruralista” e “da bíblia”, em maioria integradas por companheiros de viagem do bolsonarismo nas eleições. Seu apoio somente é entregue em prestações e cada uma cobra do governo a contrapartida: cargos e posições de poder.

Na Câmara, na ocasião, também dispôs do apoio da ala “lavajatista” do bolsonarismo. Dotada de organização autônoma, apresentou-se mais sólida que a própria organização do bolsonarismo de raiz. Expressa-se na voz do Movimento Brasil Livre (MBL), que irrompeu no célebre 13 de Junho de 2013 nas ruas de São Paulo e do Brasil sob a liderança do hoje deputado federal Kim Kataguiri, Renan Santos e do vereador Fernando Holiday, todos eles ideólogos e militantes programáticos de um liberalismo econômico ortodoxo de estado mínimo, com democracia eleitoral. Aliado ao bolsonarismo, contudo o MBL situa-se ideologicamente na posição de centro-direita, vez que mantém compromisso com a liberal-democracia. A partir da ruptura do bolsonarismo de raiz com o PSL e do banimento do ex-ministro Gustavo Bebbiano, fundador do PSL e, até então, primeiro-amigo do presidente, a crônica parlamentar do movimento bolsonarista tem sido a crônica da sua balcanização e fracionamento, a crônica de cisões irrevogáveis entre ex-companheiros, logo apontados como inimigos. Com a saída do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro do governo Bolsonaro, o MBL passou à oposição ao governo e ao bolsonarismo. Pior: protocolou na Câmara dos Deputados um pedido de impeachment do presidente. Ao MBL, antecipara-se, em nome do PSL, a deputada Joice Hasselmann, da vertente “lavajatista”, ex-líder do governo na Câmara. Foi a portadora de um precedente pedido de impeachment do presidente, por ela protocolado em nome do PSL. Seita não tolera divergência. Místico que acredita no próprio misticismo entrega-se a uma paixão única, a paixão por si mesmo.



O bolsonarismo e a cruzada contra o ''sistema''


O bolsonarismo não cabe em um partido. Aliás, em partido algum, em bloco nenhum, em aliança alguma. Por natureza, completamente narcísico, é antipartido porque, por definição, é antipolítica. Como crê, a forma-partido e a própria prática da política sob a democracia são parte integrante e o modo de ser constitutivos, estruturantes, daquilo que o movimento denuncia como sendo o “sistema”, por definição, uma espécie de chocadeira da corrupção endêmica, dos costumes, da civilização. Contudo, valendo-se da prática da democracia competitiva eleitoral o movimento se lançou com volúpia e apetite pantagruélico à possessão do poder. Apetite e volúpia que impedem qualquer distinção entre o movimento e a presidência da República, isto é, entre o bolsonarismo e o governo, entre o bolsonarismo e o Estado, o bolsonarismo e a República.

No vagalhão da onipotência, governo, Estado e República não passam de plataformas úteis para o bolsonarismo messiânico, sectário e possessivo triunfar sem contenção. Poderes de Estado, pesos e contrapesos democráticos e Constituição são, ao mesmo tempo, “oportunidades” e obstáculos a conter, senão eliminar. Fique esclarecido: o “acordo” do bolsonarismo com a democracia é uma manobra tática, portanto, substituível segundo a capacidade do bolsonarismo no poder de fragilizar a democracia e as instituições do estado de direito democrático. Afinal, há que se observar, o Poder Legislativo e os partidos, o Poder Judiciário, a imprensa são partes integrantes do “sistema”. Daí o empenho sistemático do bolsonarismo em solapar o STF e o Congresso Nacional, ao tempo em que faz um combate sem tréguas contra a imprensa, ou seja, contra um dos fundamentos da democracia: a liberdade de opinião e de imprensa. Autoproclamado antissistema, adiante examinaremos o que o bolsonarismo designa como sendo o “sistema”.

Decorre da incompatibilidade do bolsonarismo com a instituição da democracia chamada Poder Legislativo o fato do movimento bolsonarista congregar-se em torno do presidente, vale dizer, aninhar-se completamente ao poder governamental. Parlamentares bolsonaristas nada articulam. Porta-vozes, e nada mais, apenas reverberam a vontade de poder do núcleo duro do bolsonarismo, o chamado “gabinete de ódio”, o bunker palaciano do movimento. Na ausência de um projeto para o país, basta o “mito” e a “promessa”.


No poder, o mito não vive apenas da crença mítica, embora para o bolsonarismo o apoio dos seus crentes seja o mesmo que legitimação para governar. Daí o permanente apelo à mobilização, à ritualização das mobilizações, o modo “mágico-catártico” de renovar e atualizar a sagração do mito e renovar a promessa redentora de, em completa negação da realidade, estabelecer uma nova ordem somente existente na evocação do mito. Seja como for, há que governar, satisfazer expectativas. Sem projeto algum, para o bolsonarismo e o presidente governar é o mesmo que concentrar cada vez mais as decisões sobre a composição, organização e funcionamento do governo em um comitê central, no caso, clânico ou familista e palaciano, com livre trânsito nos palácios do Planalto e da Alvorada, no gabinete presidencial e na maioria dos ministérios. O poder paralelo do clã fez-se de fato o poder real. Nomeou pelo menos quatro dos atuais ministros, todos ativistas ideológicos do bolsonarismo de raiz: os ministros das relações exteriores, da educação, da cidadania e do meio-ambiente. Também decidiu as escolhas do ministro da secretaria executiva da presidência, o major reformado Jorge Almeida, amigo da família, por sorte alguém sensato e elevação, e do chefe da Agência Brasileira de Informação (Abin), o delegado de polícia federal, Alexandre Ramagem, o mais novo amigo da família. Sob um impenetrável e blindado controle exercido pelo vereador Carlos Bolsonaro, uma espécie de “macho alfa” do grupo, secundado pelos seus irmãos Eduardo e Flávio Bolsonaro, esse poder sem institucionalidade é a voz do governo, a voz do presidente, o elo entre o poder presidencial e os “seguidores” nas redes sociais, organizador implacável de “perfis” e da mobilização de legiões virtuais de robôs nessas redes. O antes prestigiado Gustavo Bebianno, presidente do PSL, depois ministro-chefe da Casa Civil, cometeu o “crime” de lesa-majestade contra o bolsonarismo: conter a sanha expansionista do poder do familismo clânico no governo. Transformado de um dia ao outro de primeiro-amigo em inimigo, foi imolado, banido do bolsonarismo e do governo. Começava a balcanização dentro do bolsonarismo. 

Propulsado pela conquista do poder, o movimento organizado do bolsonarismo militante dispõe do próprio presidente para garantir a musculatura das cada vez mais recorrentes manifestações públicas dos apoiadores, convocadas para renovar a lealdade das legiões ao presidente. Exemplo do gosto pelo desafio à ordem democrática e à provocação de situações-limite foi a manifestação ostensivamente antidemocrática em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, em defesa da “ditadura com Bolsonaro” e do “AI-5 com Bolsonaro”, no dia 19 de abril passado, o Dia do Exército. Rendeu ao presidente, em requerimento da Procuradoria Geral da República ao Supremo solicitando a instauração de um inquérito investigativo. Instaurado, transcorrerá conduzido pela Polícia Federal e sob o comando do STF para apurar crimes contra o estado de direito democrático. O presidente da República poderá ser indiciado. Se assim for, processado, como réu.

Uma curiosidade! Até 1964, o líder da extrema-direita Carlos Lacerda, da UDN, de grande talento oratório, à época, nas palavras do marechal Castelo Branco e primeiro presidente sob a ditadura, “ia aos bivaques para bulir com os granadeiros”. Traduzindo: agitava os quartéis em busca de um golpe militar que, supostamente, o conduziria à presidência. Com Bolsonaro no poder, sob o império da Constituição e da democracia, assediado por seu descomunal déficit cognitivo, é ele quem conduz a própria presidência da República ao quartel-general do Exército para “bulir com os granadeiros” ...  de quatro estrelas. Naqueles anos 1960, a época era uma épica. O sonho da imaginação épica criou Brasília. Gerou o cinema novo, a renascença baiana nas artes, a bossa nova, o teatro engajado. Nos dias de hoje, a época insinua-se sombria: epidemia, ademais, impulsionada por uma todo dia renovada demonstração pública da irrevogável insensatez presidencial, e, no governo, bolsonarismo e sua constelação de crises. Dor e inutilidade!

Como movimento, o bolsonarismo tem o seu “estado-maior”, não militar, civil. Aprecia emular a organização militar. Sua linhagem não é do gênero “o objetivo é nada, o movimento é tudo”. Seus propósitos são, em geral, toldados pela negatividade, reatividade, a priori contra alguma coisa. O mito não é da linhagem da promessa de uma terra prometida. Sua linhagem é outra: da ameaça. Por isso, veste a roupagem da vítima perpétua sob ameaça –não importa se real ou imaginária: é questão de crença no mito – vinda de uma entidade todo dia demonizada, o “sistema”, para justificar o seu proverbial “olho por olho, dente por dente”, ou seja, sua virulência e contínua e renovada “batalha” contra a entidade que supostamente o ameaça. Em ritual teatral, apresenta-se e reapresenta-se compulsivamente como vítima do “sistema” que impede a construção da “promessa”. Assim o presidente Bolsonaro consome os seus dias e as esperanças dos mortais. Mortal e mito, o presidente veste a roupagem do mártir para inscrever-se miticamente na ordem do martírio, do mártir sacrificial que se oferece ao “sacrifício” em nome de uma causa, ainda que inexista a causa e, menos ainda, o sacrifício! Para toldá-lo de verossimilhança, a crença dos seguidores na propensão do mito ao sacrifício é dia a dia satisfeita com a narrativa da tentativa de assassinato do então candidato a presidente, como ele quer, parte de uma trama ainda por descobrir. De novo, o suporte é a crença no mito. O risco é alto. Pois na Baixa Antiguidade e na Alta Idade Média os santos alcançavam a santidade porque imolados em martírio pela verdade. E quando os crédulos começarem a perceber que, sem a máscara, do mito restaria a farsa, no caso, a representação do sacrifício no martírio pela mentira?

O “sistema” é a própria democracia, o estado de direito democrático 


Mistificação, ausência de um senso de resolutividade e ambição descomedida: assim é o bolsonarismo no governo e sua ambição de estabelecer um poder de dominação totalizadora. A sintaxe, a linguagem, é tipicamente virulenta, adequada para espalhar o gosto pela violência, que energiza o mito. O governo não realiza. Denuncia inimigos, o “sistema”. Vitimiza-se e acusa. É um movimento sem projeto. Três propósitos são discerníveis. Primeiro, organizar, financiar, mantendo “perfis”, e manter ativo um esquema de edição e de difusão de fake News nas redes sociais. Foco: espalhar denúncia caluniosa, promover a “desconstrução” simbólica e moral de inimigos e ameaçar, utilizando uma bem orquestrada rede virtual do ódio. Esse é o instrumento permanente, em modo contínuo, de fidelização e de mobilização de uma extrema-direita em formação, cada vez mais sectária e simbolicamente instigada à prática da violência.


Começa pela verbal e gestual. Por impregnação, dá voz à indiferenciação entre verdade e mentira, crítica e calúnia, representação e realidade, versão e fato. Mobiliza apetites inconscientes, os mais baixos instintos, o medo e o ódio, instiga à vingança, choca o ovo da serpente da vontade de destruição do “outro”. Mobiliza as legiões para a libertação mítica, em última instância, pelo “sangue” sacrificial e reparador. Titanismo e tribalismo associam-se a serviço da vontade de poder. Como pensa, a sociedade não há. O que há é o indivíduo em solidão e a família. O bolsonarismo oferece o tribalismo, que dispõe ao iniciado os sentimentos de pertencimento, acolhimento, segurança e disposição ao compromisso.

Lembremos a persistência do presidente e da família na fixação da imagem de uma arma simulada com o polegar e o indicador descrevendo a forma de um revólver. A incitação que vem “do alto” é para o “tudo ou nada”. Aponta quase que desejavelmente para um apocalíptico “combate nas trevas”. As referências ao “caos social”, “o que se viu no Chile é uma fichinha perto do que poderá ocorrer aqui”, vocalizadas pelo presidente, as ameaças de fechamento do STF, da lavra do filho 03, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, além dos incessantes apelos do bolsonarismo à ditadura e ao AI-5 com Bolsonaro, apontam genericamente para um “sistema” que, da ótica do bolsonarismo, confunde-se com a própria democracia. O bolsonarismo em ação é um permanente ataque à própria democracia. No momento em que escrevo esse ensaio, o presidente voltou a artilharia contra o STF, apontando o dedo ameaçador contra o ministro Alexandre Moraes, e, também, contra os governadores, responsáveis pela decisão de promover nos estados o chamado “isolamento social” para contenção do vírus. Contra um representante de um Poder de Estado e contra os representantes do federalismo. O presidente aponta o dedo acusador contra os governadores: a morte de milhares é assunto seu, “não tentem colocar as mortes no meu colo”!

Da instigação ao ato, outro objetivo é promover manifestações de rua antidemocráticas. Organizadas nacionalmente e dispondo de financiamento empresarial, são mobilizadas através das redes sociais. Essas manifestações estão na mira investigativa do Supremo Tribunal Federal, que, como assinalado, determinou à Polícia Federal a instauração de inquérito para apurar autoria, financiamento e responsabilidades. Em sucessão, as mobilizações testam a fidelização das legiões do bolsonarismo e a estabilidade do seu apoio. Na ausência de capacidade de liderança e governança democrática, fontes de legitimação do governo e da autoridade democrática, ao bolsonarismo resta buscar a “legitimação” do próprio presidente pela via única disponível do encorajamento à crença no mito. Assim, as mobilizações atestam a legitimação, ao mesmo tempo em que, como deseja o movimento, testam a resistência das instituições e submetem as Forças Armadas a um jogo de tensões. Do que se trata, portanto, é de uma “legitimação” pela renovação militante ou de uma disposição para o combate movido pela intimidação de alvos ou de “inimigos”, sejam instituições de Estado ou personalidades, ora o STF, ora o Congresso Nacional. Assim, o movimento responde aos apelos à caça pela contínua e insaciável exposição de um inimigo. Renova-se a fúria. 

Na última semana o alvo preferencial deslocara-se do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, ao ex-ministro e ex-juiz líder da Operação Lava Jato, Sérgio Moro, visto como o mais novo e ameaçador inimigo. Agora, o ministro Alexandre de Moraes e os governadores. Segundo as tortuosas livre-associações mentais disparadas pelo presidente, frequentemente destituídas de lógica porque sempre além das possibilidades da razão compreender, a causa das mortes é, pasmem, o próprio isolamento social que se destina a proteger a vida. Segundo as tortuosas livre-associações presidenciais, o isolamento destrói emprego e renda, logo, vidas! O que o presidente desde o início queria impor é o que em epidemiologia é conhecido como “imunidade de manada”, obtida com vacina. Porém, contra a epidemiologia, o presidente queria que o ministro Mandetta autorizasse a livre circulação de pessoas e a retomada de todas atividades comerciais, de serviços e produtivas. Como pensa o presidente, quem está na chuva é p’rá molhar, ele disse. Se assim é, por que não “molhar logo de uma vez”, isto é, todos às ruas, contágio geral, sentenciando que a imensa maioria será contagiada, sem sintoma, e uma minoria, UTI e óbito! Ou, como ele tanto repete: “Fazer o quê? É a vida!” Ou, em versão recente: “E daí?” Ou, em lapidar e elevada prática da compaixão, afinal todos, um dia, vamos morrer! São João Evangelista não pôde imaginar que no terceiro milênio DC surgiria, rivalizando com a Morte, a quinta besta do Apocalipse.


 
De volta ao assunto da produção bolsonariana de inimigos, incumbe ao que ficou conhecido como o “gabinete do ódio”, coordenado pelo vereador Carlos Bolsonaro, a “desconstrução” moral e pública dos inimigos e, com fúria singular, dos “traidores”, dessa vez com o dedo apontado para o ex-ministro Sérgio Moro. Não é por acaso que no domingo, 26/04, dessa vez em Curitiba, bolsonaristas queimaram em praça pública camisetas com o nome do líder da Operação Lava Jato. No radar do bolsonarismo, Sérgio Moro será o principal concorrente de Bolsonaro nas eleições de 2022. Portanto, “fogo nele”! Isto é, nas camisetas com o nome.

Não importa se o governo tem ou não uma agenda e muito menos desempenho. Importam os símbolos, a “nova política” versus a “velha política”, o santo guerreiro disposto ao martírio contra o dragão da maldade, a “velha política”, o modo de funcionamento do “sistema”. Portanto, a agenda que interessa ao presidente não é cuidar da saúde do SUS e do povo brasileiro em combate priorizado, concentrado e permanente contra a epidemia. Por sua vez, a agenda da economia interessa porque, afinal, o desemprego, o aumento da pobreza e a crise social poderão levar o governo e o presidente ao descrédito entre as próprias legiões que ainda o veem como mito. Portanto, a agenda é a simbólica, passional, em ritmo de modo contínuo de conflito e exacerbação salvacionista. Empenha-se em criar e recriar um clima de “Guerra Fria” interna associando comunismo, esquerdas, PT, corrupção e, é claro, o “sistema”, sistema e governadores, sistema e Sérgio Moro, sistema e “isolamento social”. Como é guerra, vale tudo. Portanto, em remissão à linguagem da ditadura militar, utilizar fake news é nada mais que mover contra o inimigo uma justa “guerra psicológica adversa”: a mentira, para o bolsonarismo, “santa”. Inventaram a mentira virtuosa! Na ditadura, todo inimigo era “terrorista”. Sob Bolsonaro, todo divergente é “inimigo”. Até o vírus é “comunista”, ou a serviço do comunismo! O problema existencial do bolsonarismo é, sem Bolsonaro no poder, ele é nada. E Bolsonaro no poder, sem o mito, é nada. Mito que somente se sustenta no combate sem trégua, que, como metáfora, exige “sangue”, “sangue novo”, em sucessão, isto é, no combate indispensável à reprodução ampliada do ódio, da fúria. Como o nazismo fez com os ciganos, imigrantes, judeus, adversários, não-“arianos”, com os jovens alemães que, ao recusarem o engajamento exigido pelo partido nazista na violência em ato, apenas apreciavam literatura e o “swing”. 

Para o bolsonarismo, o jogo democrático da disputa política é, ao mesmo tempo, oportunidade de acesso e permanência no poder, mas é, também, uma ameaça ao movimento e ao presidente. Para justificar o ódio, o ódio precisa da companhia das ameaças. É por isso que a ascensão de novas lideranças originárias do centro ou da centro-direita liberal-democrática desloca o combate do bolsonarismo ora para o governador Wilson Witzel, do Rio de janeiro, ora para o governador João Dória, de São Paulo, em seguida, em direção ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, daí ao ex-ministro Sérgio Moro, e assim por diante, em interminável combate. A paixão bolsonariana total pelo combate banhado em ódio não admite a possibilidade da compaixão, a sensibilidade elementar face à dor da perda em plena epidemia. Afinal, “o que eu tenho com isso?”, “não sou coveiro”, ele diz.



O bolsonarismo e o “centrão” ou onde encontrar a “nova política”? 

Bolsonaro odeia a complexidade. Deseja uma realidade bipolar, fixa, extremada, do tipo “esquerda” contra “direita” em luta de aniquilação. Para o bolsonarismo, matizes, diferenças, esquerdas e direitas, centro-esquerda e centro-direita, diferente da extrema direita, não cabe no pensamento binário e elementar do preto ou branco, e nada mais. Para ele, direita é una, e é Bolsonaro. Ponto. Esquerda é una, e é Lula. Ponto. Bolsonaro tanto odeia Lula quanto precisa do Lula. Precisa do Lula para bipolarizar e apagar os matizes. Lula é, ao mesmo tempo, seu pesadelo e seu sonho. Não por acaso negou ao então ministro Sérgio Moro o apoio à condenação em segunda instância. Isso mesmo. Negou! Apesar da lei da “ficha limpa” que impede a candidatura do ex-presidente, Bolsonaro odeia e tem medo e, ao mesmo tempo, precisa do ex-presidente Lula. Por isso odeia Moro, Dória, Witzel, Maia e qualquer um que tornar algo mais complexa, diversa, sofisticada a disputa política, deslocando-a em direção ao centro ideológico do espectro político. O mito precisa encarnar o papel do “santo guerreiro” em luta perpétua contra o “dragão da maldade”.

Entretanto, quis o diabo, nada mais que o próprio, o demônio, o “cujo”, que ou diretamente do Parlamento ou por provocação interposta ao Congresso Nacional, o santo guerreiro fosse confrontado com a “provação” da possibilidade do impeachment. Em pacto com o “cujo”, o bolsonarismo decidiu-se: contra o demônio, as artes do demônio. Astúcia da razão! Alie-se ao demônio para melhor combater no próprio inferno. Assim o bolsonarismo concede-se passe-livre para associar-se ao velho “centrão”, a fina flor do pântano da corrupção, com suas excelências Valdemar da Costa Neto, condenado e preso por conta do “mensalão” do PT-PP-PTB, Roberto Jefferson, outro condenado no “mensalão”, agora interlocutor, senão conselheiro do presidente, e tantos outros chamados à mesa de café da manhã presidencial e palaciana. Mas o “centrão” não é, precisamente, o núcleo duro do “sistema”? Como não dá para “explicar”, a saída é a fabulação: o diabo estaria submetendo o santo guerreiro à provação! A fabulação bolsonariana encarrega-se, agora, de justificar a provação. Recebeu a ajuda do vice-presidente, o general Mourão, que já distinguiu no “centrão” entre os pecadores e os justos. General: o presidente negocia com Valdemar Costa Neto, com Roberto Jefferson! O senhor está “cruzando a linha”: cartão vermelho para a sua tentativa de justificação do injustificável. Segundo a fabulação bolsonariana, a provação do mito agora consiste em “entrar” no “sistema” para melhor combater o “sistema”, conhecendo-o por dentro. Olhar e penetrar no abismo ... e “esquecer” que o abismo olha para ele e o seduz! “De te fabula narratur!”

Ora, para escapar das garras do impeachment, não foi essa a mesma fabulação do PT, no final do primeiro governo Lula, quando se decidiu por associar-se ao “centrão” e ao MDB, ocasião em que se formou o consórcio de poder que iria orquestrar o sistema de corrupção que resultou no “petrolão”, objeto da Operação Lava Jato? E o que aconteceu ao PT? Fez de si mesmo, em servidão voluntária, membro nato e destacado do “sistema”, que tanto combatera à base do mantra petista do “Nós contra Eles”, de triste memória. Lembram-se do discurso da “ética na política” contra ... a “velha política”? Discurso autoral made in PT! Na versão Bolsonaro: “nova política” contra “velha política”. Ou: conversa mole p’rá boi dormir! Quem ficou horrorizado foi o pobre do diabo ao perceber sua ingenuidade! O mesmo diabo agora assusta-se na companhia de Bolsonaro. Medo de perder o trono das trevas. O PT, mais moderado e com história na luta pela democracia, não tinha propósito algum de trocar a prática da política democrática pelo “combate nas trevas”, essa paixão totalizadora segundo Bolsonaro. O problema do PT é a ausência de sabedoria, que passa por uma autocrítica catártica, seguida de renovação, já.

E a corrupção, perguntariam os bolsonaristas? E o pacto com o “centrão”? O bolsonarista sectário não quer saber de dúvida; entrega-se cegamente à justificação dos atos do “mito”. Apenas crê e obedece, senão entra em colapso, em crise. Pensar e ponderar causa danos. Para não colapsar, não se pergunta sobre a trama que resultou na ruptura do ministro Moro com o presidente Bolsonaro. Não quer saber que o presidente, adepto do “familismo”, para proteger filhos quis apropriar-se da Polícia Federal como assunto privado com o propósito de violar a autonomia da instituição, destituir o diretor-geral e impor o “seu” diretor e, assim, violar o sigilo de inquérito, controlar o andamento de inquérito, corromper a investigação que aponta para os filhos. Abuso de autoridade, obstrução da justiça e assim por diante. Como o diabo não há, o que há é o homem humano. O problema de Bolsonaro, o “santo guerreiro”, reside na cada vez mais próxima possibilidade dos bolsonaristas lavajatistas descobrirem que o santo guerreiro e o dragão da maldade são a mesma pessoa, que o presidente, o mito e a farsa contracenam o mesmo teatro. Daí a pulsão bolsonarista para aniquilar a vida democrática e o republicanismo, para levar o poder e o governo ao “combate nas trevas” de uma tirania, aberta ou no limite da legalidade. O tempo conta contra Bolsonaro. Falta combinar com os generais!   

Na linhagem do “tudo ou nada” e do desejo do “combate nas trevas” de quem quer “ditadura e AI-5 com Bolsonaro” e explicita encantamento com o armamentismo dos cidadãos, não é improvável que, subjacente e não diretamente vocalizado, parte do bolsonarismo militante venha a se organizar em milícias armadas para o “tudo ou nada”. A pauta de condutas bolsonarianas reúne o extremismo, o messianismo, o titanismo muscular exibicionista, a abusiva exibição de violência verbal, corporal e gestual. Daí o gosto mórbido por situar-se no olho do furacão, em estado de guerra perpétua. O cidadão Bolsonaro sempre olhou para o abismo. Na presidência, o abismo todo dia olha para ele, penetrando-lhe o psiquismo.