Muito provavelmente nem o mais pessimista torcedor do Cruzeiro poderia imaginar que o ano de 2021 começaria pior que o de 2020 para o clube. A ideia era, a esta altura, já estar matematicamente livre da Série B do Campeonato Brasileiro (quiçá brigando pelo título, o que poucos realmente faziam questão), apenas cumprindo tabela em campo e já planejando o time para o retorno à elite. Mas ficou, de fato, no sonho – ou melhor, no pesadelo.
O Cruzeiro está afundado em dívidas (já superou a marca de R$ 1 bilhão), sem receita e vai passar mais uma temporada na Segunda Divisão. Pior: o futuro é mais nebuloso e incerto do que muitos podem pensar ou fazer crer.
A impressão que dá ao ouvir entrevistas de dirigentes celestes é de que eles não aceitam ou não querem admitir a realidade. Tipo negando as aparências, disfarçando as evidências, sabe? Como se a Série B e as demais agruras fossem nuvem passageira, e não esta tempestade que estacionou sobre a Toca da Raposa, com raios e trovoadas. Numa analogia à trágica pandemia: como se fosse uma gripezinha.
A Série B (como a COVID-19) não é gripezinha, não se cura com cloroquina.
Em situações extremas, muitos preferem aderir ao negacionismo, fingir que está tudo bem ou que as coisas vão se resolver naturalmente, até com ajuda divina. Seria bom se fosse assim. A prática mostra que não é.
É preciso coragem para encarar a situação. Humildade para reconhecer as adversidades. E força para enfrentá-las. O Cruzeiro nunca olhou a Série B diretamente nos olhos, nunca assumiu estar ali, ser parte dela.
Tinha de ter mergulhado fundo para emergir renovado. Em vez desse mergulho, ficou boiando na superfície, à espera da marola salvadora para levá-lo de volta à terra firme. E ela o levou para o alto-mar.
Esse filme foi, de certa forma, previsível. Se não o roteiro todo, pelo menos os principais capítulos. E aqui não é questão de ser engenheiro de obra pronta. Na primeira coluna Tiro Livre do ano passado, em 10 de janeiro (quando a gente nem sequer imaginava o pandemônio que nos aguardava, com a epidemia do novo coronavírus), veio o alerta: “Ainda não é possível determinar quão fundo é o poço cruzeirense. Há mais espaço para descer, e não apenas esportivamente falando”.
O Núcleo Dirigente Transitório, criado para gerir o clube até a eleição do novo presidente, acabava de perder Pedro Lourenço, um de seus vértices mais importantes (pelo suporte financeiro). Ele até reapareceria para ajudar a administração atual, mas hoje em dia não está mais tão imerso no clube, embora publicamente todas as partes neguem qualquer desavença.
No início de 2020, o Cruzeiro se apresentava, como saiu na coluna de 31 de janeiro, como um clube quebrado. "Sem dinheiro para despesas básicas. Com débitos milionários a ameaçar sua existência. Precisando resgatar a credibilidade no mercado."
Pouco menos de um ano depois, situação ainda mais degradante. Mais jogadores acionando a Justiça – o zagueiro Dedé cobra nada menos do que R$ 35 milhões. A União dando cinco dias, a partir da notificação, para o pagamento de R$ 8 milhões. Três meses de salários atrasados, jogadores se recusando a se concentrar como protesto.
Em 8 de outubro, com a receita já desandando nas quatro linhas, estava lá em Tiro Livre: “Era chegada a hora de a Raposa tirar o verniz da realidade. Baixar a bola e entender o cenário sem filtros, sem terceirizar culpa e fingir que o monstro não é tão feio quanto parece. Ele é, sim senhor.”
Hoje, o Cruzeiro é sua história e sua marca. Só. Ambos gloriosos, mas que não bastam. Em um cenário sem perspectiva financeira, nem um projeto esportivo consistente, é preciso mais do que bater no peito e dizer: “Somos grandes”.
O funcionamento de um clube de futebol acaba seguindo engrenagens que se retroalimentam. Um time vitorioso atrai receita, e a receita possibilita a formação de uma equipe com potencial para ser vitoriosa, pagar as contas, manter o ambiente saudável, esportiva e administrativamente falando.
Hoje, o ciclo celeste funciona de forma inversamente proporcional: não tem dinheiro, não dá para aplicar em time, nem pagar as contas. Perde jogo, perde jogador, perde dinheiro, não forma time, aumenta as dívidas, e assim vai...
O Cruzeiro precisa de uma ressurreição, um renascimento. Como time de futebol, como clube e na sua essência, como instituição. Isso precisa vir de dentro. Enquanto não ocorrer essa cisão de fato com o passado, não haverá luz no fim do túnel.
Se o círculo vicioso não for quebrado (e isso passa também por uma renovação em um viciado Conselho), continuará sendo um clube de poucos, apesar dos 9 milhões de torcedores. E a caminho do precipício.