“Estamos tentando construir uma ideia.” Essa frase, dita pelo técnico Jorge Sampaoli após a derrota do Atlético para o Goiás, na noite de quarta-feira, foi a que mais me chamou a atenção em toda a entrevista coletiva dele. Ou melhor: em todas as entrevistas coletivas que ele já concedeu como treinador alvinegro.
Quem acompanha a trajetória do argentino – não só no Galo –, sabe que essa é a premissa do trabalho dele. E, nessa concepção, título não é causa, é consequência.
Só que para a torcida (de qualquer clube brasileiro), os títulos são a razão de existir. São a métrica para determinar a competência de alguém.
Como observadora do comportamento humano também no futebol, já ouvi/li de tudo desde o fim da partida contra o Goiás. Desde que o Atlético, seu time e sua campanha no Brasileiro são uma vergonha até equiparações de Sampaoli a outros técnicos menos gabaritados, sob a justificativa de que esses custariam muito menos e (garantem) dariam o mesmo resultado.
São ilações, que cabem tão somente aos torcedores.
Leia Mais
Brasileiro 2020: Você cravaria o Inter campeão? Atlético, vice-líder do Brasileiro e em crise? Pode isso, Arnaldo?Sampaoli no Galo: do endeusamento pós-vitórias à crucificação pós-derrotaA blindagem para a volta de Cuca ao AtléticoSampaoli se despede do Atlético e deixará clube após o fim do BrasileiroO que o Bayern, campeão mais uma vez, tem a nos ensinar sobre futebolTV argentina revela o que o River quer para liberar Nacho para o AtléticoEssa ideia precisa ser bancada incondicionalmente pelos dirigentes. O clube, como um todo, tem de pagar para ver.
Mas no Brasil esse preço é muito alto – e aqui não se trata do salário de Sampaoli. É uma questão cultural.
A cada ano, o torcedor transfere todas as suas expectativas e/ou frustrações anteriores num sistema de progressão geométrica. Se o time ganhou um título, na temporada seguinte tem a obrigação de ganhar dois. Se não ganhou nenhum, se sofreu contra o rebaixamento, não importa: vem a mesma pressão.
Nesta sexta-feira (5/2), completam-se 333 dias de Sampaoli no Atlético. O que começou como uma aposta ousada, reverenciada por quase todos, pode ter um capítulo final bem deprimente.
Um carimbo do fracasso cultural do futebol brasileiro, que não acredita em nada além do que o seu conhecido ciclo vicioso, vivendo dos mesmos nomes e do imediatismo. A tal zona de conforto, que todo mundo abomina e, ao mesmo tempo, adora.
Decerto Sampaoli vai pagar por muitos dos pecados que cometeu como técnico no campo, mas também por acreditar piamente nessa sua tese: de que é possível construir uma ideia. E por que não é?
Primeiramente, porque ele não é o camarada que ganha a simpatia alheia na base do discurso, como Vanderlei Luxemburgo. Nem tem o carisma de um Cuca. O jeito afetuoso de Tite. Ou as ironias folclóricas de Felipão.
O Sampaoli que se apresenta é durão, reclamão, cara fechada, cercado apenas das pessoas da confiança dele. E isso desagrada muita gente, especialmente quem está acostumado às resenhas e à bajulação.
Para se sustentar em toda essa aridez, ele precisava muito do título brasileiro. Só assim estaria aprovado para continuar no cargo para a segunda temporada.
Outro ponto importante que parece influenciar nesse contexto: não há uma conexão sólida com os torcedores. E isso se refere não só ao Sampaoli, mas ao time como um todo.
O distanciamento imposto pela pandemia de COVID-19 tirou um grande pedaço da relação torcida-técnico e torcida-equipe. No Atlético de hoje há muitos que não experimentaram essa afinidade que o mundo virtual não supre.
A ideia que Sampaoli tenta construir poderia encontrar terreno fértil caso houvesse esse vínculo.
Mas a este Atlético falta sentir a vibração de quem está em um estádio cheio, de quem vê os torcedores empurrando o time no gogó, cantando o hino, essas coisas que ajudam a dar liga. Sampaoli não teve – e pelo andar da carruagem não terá.
A cada pênalti perdido por Hyoran e companhia; a cada jogador que, como Sasha, chega na cara do gol adversário e erra; a cada bola que a zaga assiste cruzar a área (como no gol do Goiás); a cada finalização que Éverson não defende, o débito vai direto para a conta de Sampaoli.
A correção dessa rota não depende de rios de dinheiro. Não adianta encher o time de medalhões. Não tem herói da Marvel que vença essa batalha sozinho.
Essa fusão é obtida de outra forma. De maneira mais coletiva. É preciso, como primeiro passo, acreditar no trabalho. Se não for tarde demais.