Noite de 17 de outubro de 2018. O árbitro apita o fim do segundo jogo da final da Copa do Brasil. O Cruzeiro se sagra campeão. Além da taça, embolsa R$ 50 milhões em premiação. Esse valor, somado aos outros que a Raposa recebeu à medida que foi avançando no torneio, resultou em um saldo de R$ 61,9 milhões. Nada mal, não é mesmo?
Corta para fevereiro de 2021. Eis que, 855 dias depois, o clube celeste outrora milionário agora sofre para pagar R$ 100 mil da multa rescisória do técnico Felipe Conceição ao Guarani. O mundo não gira, ele capota.
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A Série B não era uma gripezinha, e o negacionismo derrubou o CruzeiroLisca Doido, carismático e competente: por que o técnico do América é o personagem da semanaOs milagres que Felipão precisa operar no CruzeiroO que a saída de Leo significa para o CruzeiroQuem quer jogo de futebol devia pressionar por vacinaNo Brasil trucidado pela COVID-19, só Lisca deu a cara a tapa no futebolE tal reposicionamento passa pelo personagem central da segunda parte daquele salto temporal: o treinador.
Pode estar em Felipe Conceição a chave deste novo Cruzeiro. O que não tem caixa para pagar R$ 100 mil. O que precisa se equilibrar entre os três meses de salários atrasados e a necessidade de contratar reforços com qualidade e sintonia suficientes para devolver o time à elite do futebol nacional. O que tenta resgatar sua credibilidade, como marca e equipe, no mercado e nas quatro linhas.
Acima de tudo: o que precisa recuperar a autoestima de seu torcedor, abalada pelos últimos acontecimentos.
Uma das opções que a diretoria cruzeirense tem ventilado para pagar o débito com o Bugre é envolver atleta na jogada, como compensação financeira. Trocar jogador por jogador eu já vi.
Até de jogador trocado por bola e par de chuteira eu tenho conhecimento – foi o caso do ex-atacante Euller, e isso ele contou para a repórter aqui lá pelos idos dos anos 2000, quando estava em sua segunda passagem pelo Atlético. Em uma entrevista, perguntei a ele sobre como havia sido o início da carreira. O Filho do Vento então lembrou ter chegado ao América assim, trocado por bola, chuteira e uma beliche, entregues ao Venda nova, onde ele atuava.
Futebol tem mesmo de tudo. Mas treinador trocado por jogador é bem raro, me arrisco até a dizer inédito.
Nesse contexto, Felipe Conceição chega para fazer o que Adilson Batista, Enderson Moreira, Ney Franco e nem o medalhão Luiz Felipe Scolari conseguiram.
Ironicamente, é justamente o caçula dessa turma aí que pode ser a tacada mais certeira do clube celeste para sedimentar seu caminho de volta à Primeira Divisão.
Pois entre os dois Felipes, o que tem mais chance, mais perfil para reerguer o Cruzeiro, no atual contexto, é o Conceição.
Por mais que o torcedor cruzeirense sonhe com treinadores de renome e reforços de peso, a nova realidade do clube aponta em outra direção. E é isso que todos parecem compreender agora. Não adianta viver do passado. As glórias estão lá, mas elas não pagam contas, não garantem vitórias.
Por essa nova estrada que o Cruzeiro se vê obrigado a passar o atual treinador já percorreu: de montar um time sem estrelas, sem dinheiro e, por isso, ter de garimpar peças em mercados alternativos, descobrir talentos ainda anônimos.
Não era o perfil de Felipão. E foi por isso mesmo que ele jogou a toalha.
Talvez nem todos se recordem, mas os frutos colhidos pelo técnico Lisca no América em 2020 foram consequência também de sementes plantadas no ano anterior por Conceição – que foi contratado pelo Coelho para ser coordenador técnico e depois virou treinador.
A emenda saiu melhor que o soneto. Ele pegou a equipe agonizando na lanterna da Série B do Campeonato Brasileiro de 2019 e por muito pouco não a colocou na Série A.
É claro que Lisca veio e deu o toque dele ao time americano, porém, encontrou uma estrutura muito bem montada, um alicerce sólido, e a partir dali implementou seu estilo.
Felipe Conceição conta que foi necessário um trabalho de “formiguinha” para a construção daquele América. Persistência. Resiliência. É a receita que terá de seguir também na Toca, com a ressalva de que a pressão, agora, triplicou.
É aí que entra um componente importante: mais do que nunca, ele precisa que confiem no trabalho dele. Diretoria e torcida. Doses de paciência e humildade para aceitar que este é o novo Cruzeiro, o Cruzeiro possível. E só ele poderá trazer de volta aquele velho Cruzeiro, que escreveu páginas heroicas e imortais.