Daqui a alguns anos, qual a principal recordação que você, caro leitor, terá do Campeonato Brasileiro que se encerrou nesta quinta-feira (25/2)? Muitos dirão que foi a trajetória do campeão, Flamengo, que chegou a ser desacreditado em alguns momentos, mas com um potente sprint final garantiu a taça.
Para alguns atleticanos, vai ficar na memória como o “título mais fácil de ganhar” que o time do Galo deixou escapar. Para os vascaínos, a frustração de ter vivido da alegria da liderança ao desgosto do rebaixamento. Botafoguenses, certamente, vão preferir nem guardar lembrança alguma da competição em que terminaram como o pior dos piores, o lanterna, último colocado.
Mas o drama maior, meus caros, nunca esteve dentro das quatro linhas. A maior marca do Brasileiro de 2020 estará do lado de fora dos estádios: foi o campeonato em que a pandemia de COVID-19 derrotou, de goleada, um país inteiro.
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Se o futebol achou que ficaria à margem da COVID, errouCom a volta do futebol, Brasil afronta o novo coronavírusOs jogos de futebol e a COVID-19 no Brasil: política do Pão e Circo?Tem fura-fila da vacina no esporte. E muita gente acha que está tudo bemQuem quer jogo de futebol devia pressionar por vacinaNo Brasil trucidado pela COVID-19, só Lisca deu a cara a tapa no futebolA blindagem para a volta de Cuca ao AtléticoSó que neste Brasileiro de 2020 – que só terminou na noite de 25 de fevereiro de 2021 – a torcida perdeu o brilho. Literalmente, ficou sem espaço.
Desde o pontapé inicial, em 8 de agosto do ano passado, o campeonato teve arquibancadas vazias. Bandeiras estáticas. Vozes artificiais. Gritos de gol mecânicos ecoando pelas arenas, nascidos das mãos de um DJ e transportados pelos ares por alto-falantes.
Em tempos de mentiras institucionalizadas por governantes, nada além de mais uma “fake news”.
Os mais atentos vão se lembrar que a competição começou sob protocolos esdrúxulos, considerados ferramentas para minimizar o potencial de contágio. Não podia cuspir no campo. Não podia abraçar o companheiro na hora de um gol. Não podia beijar a bola. Testagem em “massa”.
Nada disso adiantou. Surtos de COVID-19 foram registrados na maioria dos clubes. No Atlético, o vírus ganhou uma mãozinha da comissão técnica, que promoveu uma festa em meio à pandemia.
Na noite da primeira rodada, quando Fortaleza e Athletico-PR entraram em campo para se enfrentar no Castelão, o Brasil tinha acabado de romper a casa das 100 mil mortes causadas pelo novo coronavírus: para ser exata, 100.543 óbitos.
Naquele dia, eram mais de 3 milhões de infectados (3.013.369, segundo informações das secretarias de Saúde dos estados).
De lá até o apito final que determinou o campeão nacional, foram 201 dias, mais 150 mil mortos e mais de 7 milhões de casos confirmados da doença.
No dia em que o capitão rubro-negro ergueu a taça no Morumbi, o Brasil registrou seu pior momento da pandemia – que nesta sexta-feira (26/2) completa um ano no país –, com recorde de mortes em 24 horas: 1.582.
Paralelamente a esse cenário aterrorizante, uma tímida e sofrida campanha de vacinação, que atingiu, até agora, apenas 3% da população.
Por isso, os campeões que me desculpem, mas não dá para celebrar nada.
Nesse espaço de pouco mais de seis meses, enquanto a bola rolava (meio quadrada, é verdade) pelos gramados de Norte a Sul do país, milhares de brasileiros perdiam a vida de forma cruel.
Não dá para normalizar a morte de 251.661 pessoas, tantas delas apaixonadas por futebol. Não dá para achar que é do jogo 10.393.886 pegarem uma doença tão traiçoeira, que pode ser fatal. O esporte não pode se prestar a esse papel desumano.
Futebol é paixão descontrolada, sinônimo de sorrisos, de redenção. Mas, em 2020, não. O Campeonato Brasileiro não deve ser sinônimo de alegria para ninguém. Não deve deixar outra lembrança que não seja a desses macabros tempos.
Acha amargura demais? Infelizmente, é a nossa realidade. E sabe o que é pior? Essa partida que estamos disputando contra o novo coronavírus não vai terminar em 90, 100 minutos. Nem na prorrogação. E não tem disputa de pênaltis ou gol de ouro.
Essa peleja vai continuar. E pelo desprezo pela vida demonstrado pela autoridade maior do país, ainda ficaremos assim por muito tempo. Com estádios e corações vazios.