Jornal Estado de Minas

ARTIGO

Cristina de Deus e Cristina La Veneno: a luta pela sobrevivência


A história de duas Cristinas de alguma forma se cruzou para mim no último final de semana. Estou passando algumas semanas em Madrid, capital da Espanha, e decidi ver pessoalmente a Placa em Memória à Cristina Ortiz, também conhecida como La Veneno, pois uma das melhores obras que vi no ano passado foi justamente a série biográfica sobre a história dela: “Veneno”, disponível na HBO Max. 





Cristina La Veneno foi uma mulher trans muito famosa na Espanha. Foi descoberta pela mídia sensacionalista em uma reportagem sobre mulheres trans e travestis que se prostituíam no Parque del Oeste na década de 90.  Sua ousadia e autenticidade a fizeram se destacar entre as outras entrevistadas e daí em diante passou a participar de vários programas de televisão. Se tornou cantora e também passou a fazer apresentações em boates e festas. Ganhou muito dinheiro, perdeu tudo, fez filmes pornográficos, foi presa e voltou ao estrelato até a sua morte, em 2016. Ou seja, a vida de La Veneno rendeu uma história nada morna para a série.

No meu caminho para ver a homenagem à Cristiana La Veneno, passei por uma mulher que mais tarde descobri ser a sua xará: Cristina de Deus. Ela estava na rua, no bairro Malasaña, um espaço boêmio de Madrid. Parecia estar “fazendo ponto”, o que é comum de ver nas ruas daquele bairro. Reparei nesta mulher porque tinha um perfil diferente das outras mulheres que ali trabalham: era uma mulher de mais de 50 anos, cabelo raspado nas laterais com um moicano e roupas largas. Pois bem, reparei, mas segui para o meu caminho.

Fui à Praça del Oeste e vi uma bela homenagem à Cristina La Veneno. Muita gente escreve palavras de gratidão e de reconhecimento no vidro que cobre a placa e na estrutura de tijolos que a sustenta. Uma pessoa escreveu: “obrigado por agir para que outras possam viver”. Cristina La Veneno, em programas de TV de grande audiência nos anos 90, deu visibilidade à existência de pessoas trans, o que era pouco discutido.




 
Fãs escrevem agradecimentos à La Veneno na estrutura de tijolos que sustenta a placa em sua homenagem (foto: Léo Drummond)
 

Essa homenagem no parque, feita pela Prefeitura de Madrid, é algo grandioso e ousado: uma mulher trans homenageada publicamente no local em que se prostituía antes de ficar famosa. Ela tinha pedido que ao morrer fosse cremada e que no Parque del Oeste espalhassem as suas cinzas. “Neste parque, com minhas amigas, fui feliz”, dizia La Veneno. Um pouco do que ela e suas amigas viveram neste local também é mostrado na série da HBO Max. 

Ao voltar da visita ao parque, vi novamente Cristina de Deus batalhando pela sua sobrevivência no mesmo lugar em que estava quando passei por ela mais cedo. Parei para conversar. Ela inicialmente pensou que eu seria um cliente. Quando entendeu que não era esse o caso, perguntou se eu poderia ajudá-la porque queria comer algo e não tinha conseguido sequer um cliente ao longo do dia (por isso continuava ali no mesmo lugar). Convidei-a para jantar e fomos a um restaurante que ela conhecia. Descobri que ela era brasileira e então começamos a conversar em português. Vi que as duas Cristinas tinham mais similaridades que apenas os nomes.

Batalhando um dia por vez

As duas Cristinas encontraram dificuldade para inserção no mercado formal de trabalho e por isso recorreram à prostituição como forma de sobrevivência. Cristina de Deus é uma mulher cisgênero negra, latina, de 52 anos, vivendo na Europa. Essas interseccionalidades trazem um cenário de extrema exclusão para ela. Cristina La Veneno, como a maioria das mulheres trans, também precisou se prostituir para sobreviver. No Brasil, 90% das mulheres trans e travestis têm a prostituição como fonte de renda, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), justamente por essa dificuldade de encontrar emprego devido ao preconceito.





O envelhecimento e o ganho de peso fizeram com que as duas passassem a ter mais dificuldade de sobreviver também na indústria do sexo. “Eu trabalho na Europa há 30 anos. Antes eu dançava em boates e tinha muitos clientes. Agora estou mais velha e com 80 quilos a mais que quando cheguei aqui. Tem muitos dias que não consigo um cliente. Em dias bons são no máximo dois. Não dá para ganhar nada e tento batalhar um dia por vez”,  contou Cristina de Deus.

As duas também não são completamente alfabetizadas, o que as exclui ainda mais. Cristina de Deus me disse que sabe algumas palavras em espanhol, mas confunde com português, por isso não conseguiria trabalhar em algo em que precise escrever. Cristina La Veneno se definia como “analfabeta, mas com notas excelentes na universidade da rua”. 

Cristina de Deus quer voltar ao Brasil, mas quando toca no assunto com suas irmãs que vivem no país, recebe o retorno de que o Brasil está perigoso demais, que elas estão sendo constantemente assaltadas e que há tiros nas ruas para todos os lados. Sugerem que ela continue na Espanha, o que Cristina acata pelo terror de viver uma situação ainda pior se voltar ao Brasil. Os familiares de Cristina La Veneno, como mostra a série, também não faziam esforço para ter convivência mais próxima com ela. A solidão é uma parte da história das duas.





Cristina de Deus provavelmente não terá uma obra audiovisual sobre a sua história de vida, mas a série sobre a sua xará La Veneno é de uma sensibilidade ímpar. O jovem casal Javier Ambrossi y Javier Calvo fez um texto muito cuidado ao adaptar para as telas a biografia de Cristina Ortiz. Daniela Santiago, Jedet Sánchez e Isabel Torres têm atuações brilhantes para retratar diferentes épocas da história de La Veneno. São três mulheres trans que fizeram história com suas indicações a prêmios de Melhor Atriz. A série “Veneno” é uma joia quase escondida no catálogo da HBO Max. Vale assistir!