O aperto de mãos entre o falecido general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, e o recém-empossado presidente José Sarney, em 1985, na transição do regime militar à democracia, simbolizou o momento em que a tutela militar sobre a nação, iniciada pouco antes da Guerra do Paraguai(1864 a 1870), ainda no Império, havia acabado. Durante mais de um século, até então, militares da ativa atuaram politicamente e se pronunciaram sobre a vida institucional do país, muitas vezes de forma truculenta e brutal, às vezes em prol da democracia e da pacificação nacional, como em 1945. O gesto pôs um ponto final na ditadura implantada após a destituição do presidente João Goulart, em 1964.
Nos bastidores, na madrugada de 15 de março de 1985, com a nação perplexa diante da internação de Tancredo Neves no Hospital de Base de Brasília, o então ministro do Exército, com a Constituição na mão, convencera as lideranças políticas da época de que o vice-presidente eleito, José Sarney, deveria tomar posse. Havia controvérsias, alguns achavam que Ulysses Guimarães, o líder do MDB, deveria assumir interinamente o cargo e convocar novas eleições. O então chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, talvez o mais poderoso ocupante desse cargo na História, sustentava a posse de Sarney. Sua opinião ajudou a dirimir dúvidas entre os dois principais protagonistas da transição: Sarney queria que Ulysses assumisse. Seria o caos. Ulysses, para evitar a crise, sempre defendeu o contrário. Coube ao general Pires Gonçalves comunicar a decisão a Sarney: “Boa noite, presidente!”, disse-lhe ao telefone.
É que nos bastidores do fim do governo Figueiredo, alguns generais pretendiam aproveitar a situação para manter o regime. Além do próprio presidente da República, o ministro do Exército, Walter Pires, e o chefe do Serviço Nacional de Informações, Octávio Medeiros. Durante a madrugada, Pires ameaçou movimentar as tropas para manter Figueiredo, mas Leitão de Abreu disse-lhe que já não era mais ministro. Sua demissão viria publicada no Diário Oficial. Leônidas Pires Gonçalves era o novo chefe militar. Não foi à toa que Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto e se recusou a participar da transmissão do cargo. À Presidência, Sarney soube cumprir a principal tarefa que recebeu: convocou uma Constituinte e passou o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, Fernando Collor de Mello, com a Constituição de 1988 em plena vigência. Presidiu o país em meio a turbulências, uma hiperinflação galopante e milhares de greves operárias e ocupações de terras, mas ajudou a nos legar um Estado democrático de direito, ampliado e moderno.
Há momentos que parecem congelar a História, como aquele do aperto de mãos do general e o político. No século passado, o principal foi Conferência de Yalta, na Crimeia, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, o segundo de três encontros entre Franklin Roosevelt (Estados Unidos), Winston Churchill (Reino Unido) e Josef Stalin (União Soviética), com o objetivo de encerrar a Segunda Guerra Mundial e repartir as zonas de influência entre as três potências vitoriosas. Entretanto, com o fim da União Soviética e o colapso dos regimes comunistas da Europa, o fio da história acabou retomado, descongelando um filme iniciado com o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, no qual o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi morto por um nacionalista sérvio, o que levou a Áustria-Hungria, da qual faziam parte a Bósnia e a Croácia, a declarar guerra à Sérvia em 28 de julho de 1914, dando início à I Guerra Mundial.
Ressentimentos
No Brasil dos anos 1980, os militares se retiraram do poder derrotados, mas em ordem. Foram mais bem-sucedidos na estratégia de abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel do que na condução da economia, devido ao fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), colapsado pela crise do petróleo. A anistia recíproca de 1979, consolidada pela nova Constituição, pôs uma pedra sobre o passado. Todas as tentativas de revisão que colocaram em risco esse pacto entre os militares e a oposição foram rechaçadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Restaram a eterna dor dos familiares dos desaparecidos, que não conseguiram enterrar seus mortos, e a frustração e ressentimento daqueles que viam na caserna uma via de ascensão ao poder, e não, exclusivamente, uma vocação militar, como acontece desde 1985. Como algumas profissões liberais e certas carreiras do setor público, a carreira militar é um canal de ascensão e mobilidade social, mas não é nem deve voltar a ser uma rampa de acesso direto ao poder político.
Somente durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que bajulou e foi bajulado pelos comandantes militares, voltou-se a discutir o papel das Forças Armadas, numa ótica de projeção nacional no processo de globalização e de atualização e modernização das forças armadas e suas doutrinas. O ressentimento em relação aos governos anteriores, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, porém, foi estimulado. O governo de Dilma Rousseff, porém, foi um desastre em relação aos militares. Havia uma ojeriza recíproca, por causa do passado, que os militares dissimulavam e a “presidenta” fazia questão de deixar transparecer, até ao compartilhar os elevadores. Quando o governo colapsou, com sua nova matriz econômica, em meio à recessão e a Lava-Jato, os militares lhe deram o troco. “Resolvam isso aí!”, dizia o comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, um grande líder militar, aos políticos que o assuntavam. Foi a senha para o impeachment.
Mas quem tirou o gênio da garrafa foi o presidente Michel Temer, que devolveu aos militares o Ministério da Defesa, nomeado o general Joaquim Silva e Luna para o cargo. O resto da história estamos assistindo. A eleição de Jair Bolsonaro, na onda do descontentamento popular com a corrupção e a recessão, possibilitou a formação de um governo assumidamente reacionário nas ideias, ultraliberal na economia e conservador nos costumes, no qual generais pragmáticos, alguns com cacoete florianista, outros com gosto pela política com o baixo clero do Congresso, são comandados por um ex-capitão nostálgico dos tempos da linha-dura de Costa e Silva e Emílio Médici. Certo estava o “Coronel Y”, nos idos da Revolução de 1930, que mais tarde viria a ser o marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, ao defender uma Lei de Inatividade que obrigasse todo militar a se desligar da carreira ao assumir funções civis, em caráter definitivo, e deixar a fila andar. Como na analogia com Yalta, a questão militar foi “descongelada” por Bolsonaro. No lugar da mão amiga, já estamos vendo o espectro do braço forte exibir seus músculos.