Jornal Estado de Minas

Nas Entrelinhas

A ética da malandragem, a derradeira estação no Rio de Janeiro

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Escrevo a coluna com o som na caixa. Chico Buarque canta Derradeira estação, na qual glamouriza com afeto e poesia as mazelas do Rio de Janeiro: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação/ À sua maneira/ Com ladrão/ Lavadeiras, honra, tradição/ Fronteiras, munição pesada”.



A imagem de São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, é invocada para sintetizar o sofrimento e a esperança, como nas paliçadas ao pé do Morro Cara de Cão, na Urca, na qual Estácio de Sá e os paulistas, com apoio do cacique Araribóia, em 1 de março de 1565, fundaram a cidade para expulsar os calvinistas franceses e seus aliados tamoios.

Sobe o som: “São Sebastião crivado/ Nublai minha visão/ Na noite da grande/ Fogueira desvairada/ Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação/ Quero ouvir sua batucada, ai, ai/ Rio do lado sem beira/ Cidadãos/ Inteiramente loucos/ Com carradas de razão/ À sua maneira/ De calção/ Com bandeiras sem explicação/ Carreiras de paixão danada”.

A música não me saía da cabeça desde a notícia do afastamento do governador Wilson Witzel e a prisão de seus aliados por corrupção, entre eles o Pastor Everaldo, presidente do PSC. Não vou repetir o que já se sabe: mais um governo atolado no mangue da corrupção.



Entretanto, para quem quiser saber como tudo isso começou, recomendo o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século 19, com a chegada de D. João VI e sua corte. A história foi publicada anonimamente, em folhetim, ou seja, em capítulos semanais, no Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853. O nome do autor foi revelado apenas na terceira edição em livro, póstuma, em 1863.

Personagens populares são os grandes protagonistas do romance, movidos por duas forças de tensão, a ordem e a desordem, características profundas da sociedade colonial da época, que se mantêm até hoje. O major Vidigal e sua comadre, dona Maria, pertencem ao lado da ordem, porém, nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. A desordem é representada pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. Entretanto, todos transitam de um polo para o outro, em momentos de acomodação.

Não existe quem esteja totalmente situado no campo da ordem nem no da desordem, não há maniqueísmo nos personagens. Leonardo, o herói do romance, o tempo todo, é o bom malandro que se dá bem, um dos arquétipos de cariocas e fluminenses. Macunaíma, de Mário de Andrade, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, retomam a temática picaresca do romance de Manoel Antônio de Almeida, que fugia completamente ao estilo romântico da época e, por isso mesmo, é apontado como um dos “fundadores” da literatura brasileira.



Mas voltemos à crise do Rio de Janeiro, que muitos atribuem à transferência da capital para Brasília e/ou à fusão da antiga Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Essa é uma visão nostálgica, embora tenha a ver com a crise estrutural do estado. De fato, a transferência da capital esvaziou política e economicamente a antiga Guanabara. 

Entretanto, a fusão dos dois estados foi feita exatamente para compensar essas perdas, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel, no regime militar, era fazer do Rio de Janeiro a capital do setor produtivo estatal, que rivalizaria com São Paulo, pois concentrava as sedes da maioria das empresas estatais.

O colapso do modelo de capitalismo de estados dos militares, porém, pôs o Rio a perder. Era um erro de conceito, abatido pela crise do petróleo e a falta de capacidade de financiamento do Estado brasileiro.

Ética da malandragem


Para complicar, a Constituinte da Fusão, em 1975, que acompanhei como repórter do antigo Diário de Notícias, se encarregou de inchar a máquina do novo estado, que já nasceu envelhecida, efetivando os comissionados e celetistas dos antigos governos do estados do Rio de Janeiro e da Guanabara e mais os que foram incorporados à intervenção pelo brigadeiro Faria Lima.



Sem muita racionalidade na distribuição de responsabilidades entre a administração estadual e a nova prefeitura da capital, o resultado foi mais gastos públicos e ineficiências, além de um passivo previdenciário exponencial e impagável. Essa situação se agravou após a Constituição de 1988, com a efetivação de mais comissionados na aprovação da nova Constituição estadual.

A última grande frustração do estado foi o governo Sérgio Cabral, que inicialmente parecia a redenção do Rio de Janeiro, por causa da exploração de petróleo e das Olimpíadas.

A euforia do pré-sal logo se esvaziou, com a mudança do regime de concessões para partilha, que desorganizou o “cluster” de empresas do setor, devido à suspensão dos leilões de poços de petróleo por sete anos, e o escândalo de corrupção da Petrobras, que colapsou ainda mais a economia fluminense, em meio à recessão do governo Dilma Rousseff. 



A corrupção endêmica nos governos, porém, tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamourização da ética da malandragem e da tolerância da elite fluminense com a secular e sistemática captura das políticas públicas por grandes interesses privados, que levam à formação de máfias de empresários e políticos que drenam os recursos do estado para a constituição de patrimônio, além do compatriota, do fisiologismo e do clientelismo.

O seu consequente apagão administrativo favorece também a ocupação de territórios cada vez maiores pelo tráfico de drogas e as milícias, protegidos pela banda podre do sistema de segurança pública.