Todas as vezes que se discute reformas eleitorais na Câmara, o que determina o seu desfecho são os cálculos eleitorais da maioria dos deputados, empenhados na própria sobrevivência, muito mais do que os projetos partidários. Não são as contas do Palácio do Planalto nem dos donos dos partidos, ainda que controlem os recursos financeiros das legendas. É como naquela fábula já citada algumas vezes: “Não se convida os perus para participar da ceia de Natal, eles sabem que vão morrer”.
Talvez seja essa a explicação da resiliência das eleições proporcionais e das dificuldades para acabar com as coligações proporcionais, aprovadas na noite de quarta-feira. Ontem, mais uma decisão importante foi tomada: a criação das federações partidárias.
Nesse desfecho, um personagem muito importante foi o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que manobrou nas votações para impedir a aprovação do distritão, que seria uma solução radical para salvar os mandatos da maioria dos atuais deputados. A moeda de troca foi a volta das coligações proporcionais, que haviam sido proibidas na reforma eleitoral passada, apesar de terem sido testadas nas eleições municipais de 2020. Às vésperas do ano eleitoral, a maioria dos deputados voltou do recesso legislativo convicta de que não conseguiria votos de legenda suficientes para se reeleger, mesmo estando entre os mais votados e com o balaio cheio de emendas parlamentares.
A expressão “Mateus, primeiro os teus”, de origem bíblica, parece ter mobilizado Lira. A pressão de sua base para derrubar a proibição das coligações foi irresistível. Usada como derivação popular, por causa da rima, a expressão faz todo o sentido. Cobrador de impostos em Cafarnaum, na Judeia, pelo fato de ser judeu e servir aos romanos, Mateus sofria muita hostilidade. O conselho de Jesus ao discípulo teria sido o seguinte: “Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão”. Trocando em miúdos, o presidente da Câmara sabe que precisa liderar a Casa. A maioria de seus aliados está em risco eleitoral. A saída foi aprovar a federação de partidos, para facilitar a montagem das chapas de candidatos a deputados federais.
Aprovado por 304 votos a 119, o projeto de lei agora vai à sanção. Permite a duas ou mais legendas se unirem em uma federação partidária e atuarem de maneira uniforme em todo o país. O texto já tem aval do Senado e segue para o presidente Jair Bolsonaro. Se não houver vetos, a federação de partidos permitirá a união de siglas com afinidade ideológica e programática, sem que seja necessário fundir os diretórios. A regra deve ajudar partidos menores a alcançar a chamada “cláusula de barreira”, criada para extinguir legendas que não tenham um desempenho mínimo a cada eleição.
Montagem de chapas
Com isso, a cláusula de barreira seria calculada para a federação como um todo, e não para cada partido individualmente. Entretanto, uma vez constituída a federação, os partidos a ela filiados deverão permanecer juntos por pelo menos quatro anos. Após registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a federação atuará como se fosse uma única agremiação partidária. Ou seja: seguirá as mesmas regras que regem o funcionamento parlamentar e a fidelidade partidária; os partidos terão a identidade e a autonomia preservados; e a aliança terá abrangência nacional.
A ideia de acabar com as coligações partidárias, mantendo a cláusula de barreira, para reduzir o número de partidos, tem amplo apoio na opinião pública e nos meios acadêmicos, mas esbarra na realidade eleitoral dos estados, nos quais houve ampla fragmentação nas eleições municipais. Os grandes partidos, com muitos recursos, e os governadores, principalmente, passariam a dar todas as cartas na montagem das chapas. A realidade eleitoral nos estados, porém, foi mais forte. Está sendo difícil montar as chapas completas, devido à necessidade de grande número de candidatos, mesmo nos grandes partidos. A vantagem estratégica daqueles que já tem mandato, devido aos recursos do fundo eleitoral e às emendas parlamentares, espanta os candidatos competitivos, que não querem disputar uma eleição sem paridade de meios.
Veio daí a rebelião dos perus. Ninguém quer morrer de véspera já tendo mandato.