O analista político e ensaísta Mark Lila, professor de História das Ideias na Universidade de Columbia, em Nova York, ganhou muita notoriedade após a eleição de Donald Trump ao publicar um artigo no The New York Times no qual pedia que a esquerda norte-americana abandonasse a “era do liberalismo identitário” e buscasse a unidade diante da especificidade das minorias. É autor de “O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias” (no original, “The once and future liberal: after identity politics”) e “A mente naufragada”, publicados pela Editora Schwarcz.
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Bolsonaro está derretendo e acaba apelando para o golpismo no paísPromessa de campanha, Joe Biden dá as costas ao AfeganistãoBolsonaro afronta o Poder Judiciário num mês marcado por crises e tragédiasBolsonaro politiza o fracasso do seu governo ao confrontar o JudiciárioBolsonaro não se ajuda e flerta com uma crise institucional graveLila é um estudioso dos dramas ideológicos do século 20. No livro “A mente naufragada”, faz uma clara distinção entre o reacionarismo e o pensamento conservador. Segundo ele, “os reacionários da nossa época descobriram que a nostalgia pode ser uma forte motivação política, talvez mais poderosa até do que a esperança. As esperanças podem ser desiludidas. A nostalgia é irrefutável”. Isso tem tudo a ver com o presidente Jair Bolsonaro, o grupo de militares saudosistas do regime militar que o cerca e os grupos de extrema direita que organizou por meio das redes sociais e, agora, estão armados até os dentes.
Enquanto velhos revolucionários da geração 1968 ainda alimentam expectativas de uma nova ordem social redentora, os reacionários são obcecados pelo medo das mudanças em curso no mundo e se comportam de maneira nostálgica, sonhando com a volta a um passado idealizado, que não é o que a História registra. “A nostalgia baixou como uma nuvem sobre o pensamento europeu depois da Revolução Francesa e nunca mais se afastou totalmente”, lembra Lila, a propósito dos pensadores que há um século serviram de caldo de cultura para o nazismo e o fascismo.
Nostalgia da ditadura
Quando o ministro da Defesa, o general Braga Neto, por exemplo, comparece à Câmara para prestar esclarecimentos e nega que houve uma ditadura no Brasil, revela uma mente naufragada no passado, quando Tancredo Neves foi eleito no colégio eleitoral e o regime militar caiu sem um tiro, em 1985. O regime militar foi, sim, uma ditadura, que durou 20 anos, suprimiu as liberdades, prendeu, sequestrou e matou oposicionistas. Essa era a narrativa dos generais que se revezaram na Presidência e impuseram um artificial sistema bipartidário, para disfarçar o regime autoritário, sob o argumento de que se tratava de uma “democracia relativa”.
A outra face dessa narrativa é a recorrente interpretação de Bolsonaro sobre o artigo 142 da Constituição, ao atribuir às Forças Armadas o papel de “poder moderador” nas relações entre o presidente da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Busca-se, como em 1937, no golpe do Estado Novo, e em 1964, na deposição de João Goulart, uma suposta ameaça comunista, no caso representada pelo favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas eleitorais sobre o pleito de 2022.
Constrói-se uma tese de afronta à legalidade, para justificar uma “intervenção militar”, com base em suposta insegurança da urna eletrônica, e as medidas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal contra a rede montada para disseminar mentiras e apregoar um golpe de Estado. “Onde os outros veem o rio do tempo fluindo como sempre fluiu, o reacionário enxerga os destroços do paraíso passando à deriva”, explica Lila. É mais ou menos o que distingue o presidente Jair Bolsonaro dos setores conservadores que participam e ainda o apoiam o seu governo, mas não sua loucura golpista.