Com origem no grego, harmonia é um substantivo que significa concordância ou consonância. Na música, faz toda a diferença, porque é a combinação de sons simultâneos e a sucessão de acordes, ao longo de uma melodia. É uma ciência e uma arte. Nas escolas de samba, porém, o cargo de diretor de harmonia não tem nada a ver com a bateria, que tem um mestre de percussão que manda e desmanda em todos os ritmistas. O diretor de harmonia cuida do sentido filosófico do termo, ou seja, da paz entre pessoas, da concordância de opiniões e sentimentos dos integrantes da escola.
Não é uma tarefa fácil, pois se trata de respeitar e manter, de forma equilibrada e justa, os interesses das partes do todo. É o diretor de harmonia, por exemplo, que organiza e arma o desfile da escola de samba na avenida. Quem já viu uma concentração antes do desfile no sambódromo, tem ideia de como essa tarefa é difícil. Pois não é que o PSDB está como uma escola de samba conflagrada às vésperas do carnaval. O problema do partido nas eleições de 2022 não é a falta de candidatos, é a ausência de harmonia.
As prévias da legenda para escolha do candidato a presidente da República ameaçam implodir o partido, tamanha a confusão e a confrontação entre os partidários do governador de São Paulo, João Doria, coadjuvado pelo ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio Netto e o governador do Rio Grande do sul, Eduardo Leite. Concebida para permitir amplo debate político, participação democrática de filiados e mandatários e uma composição política entre os pré-candidatos, após a apuração dos resultados, para unir o partido, as prévias aprofundaram as divergências. Além disso, foram um vexame organizacional, porque o aplicativo de votação entrou em colapso logo após o início das prévias, no domingo passado.
Ontem, a cúpula da legenda anunciou uma nova rodada de testes de um novo aplicativo, sem ainda definir a data de retomada das prévias. Apenas 8%, dos quase 44.000 votantes previstos, conseguiram confirmar o voto. Há três versões para o episódio, uma seria a falha do próprio aplicativo, desenvolvido por uma universidade gaúcha; outra, a sobrecarga do servidor; a terceira, no terreno das teorias conspiratórias, um ataque de hacker. Essa hipótese acirra as suspeitas de sabotagem entre os principais protagonistas da disputa.
Nos cálculos do grupo ligado ao governador João Doria, as prévias já estariam decididas a seu favor, no âmbito dos mandatários da legenda; para o grupo ligado ao governador Eduardo Leite, a disputa estaria muito equilibrada e ainda pode ser decidida pelos filiados. Qualquer que seja o resultado, porém, as prévias somente serviram para desgastar João Doria e Eduardo Leite e para ameaçar a própria sobrevivência do PSDB.
Nó apertado
Será muito difícil evitar um racha. Caso Doria vença, a dissidência do ex-governador Aécio Neves e outros caciques da legenda, inclusive de São Paulo, já está contratada. Menos provável, a vitória de Leite implodiria a legenda em São Paulo. Doria e Leite estão sendo atropelado pelo Podemos, com o lançamento da candidatura do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.
Tradicionalmente, paulistas e gaúchos não se bicam. Protagonistas da expansão territorial do país no período colonial, ambos têm tradição de resolver as disputas pela força e colecionam ressentimentos políticos, em razão da Revolução de 1930 e da Revolução Constitucionalista de 1932. Pode ser que a disputa tucana vire uma Batalha de Itararé, aquela que não aconteceu, no município paulista do mesmo nome, na divisa com o Paraná. Na Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas partiu de trem para o Rio de Janeiro, esperava-se que ocorresse um grande confronto com as tropas paulistas no local, mas a cidade acolheu Getúlio na estação ferroviária, permitindo sua entrada no estado de São Paulo. O presidente Washington Luís foi deposto em 24 de outubro daquele ano, após a chegada triunfal dos gaúchos ao Rio de janeiro.
Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, porém, Itararé foi uma das frentes de batalha. Os paulistas consideravam que São Paulo estava sendo tratado como terra conquistada, sendo governada por tenentes de outros estados e sentiam, segundo eles, que a Revolução de 1930 fora feita contra São Paulo. O fotógrafo Gustavo Jansson registrou, em 1934, as ossadas recolhidas no cemitério local como de soldados do 8º Regimento de Passo Fundo (RS), mortos em 32, prova de que houve confrontos entre paulistas e gaúchos, que duraram três dias.
Feito o registro histórico, para encerrar a prosa, vem bem a calhar um samba de quadra de Olivério Ferreira, mais conhecido como Xangô da Mangueira, por décadas o diretor de harmonia da tradicional Estação Primeira. Intitulada “A gente com briga não chega lá”, diz a canção: “A gente com briga não chega lá/A gente com briga não chega lá/ Afrouxe um pouquinho daí/ Que eu afrouxo um pouquinho de cá/ Vamos afrouxar a corda/ Pra esse nó se soltar/ Quanto mais a gente estica/ Mais o nó vai apertar/ E depois a gente fica/ Com vontade de chorar/ E depois a gente fica/ Com vontade de chorar.”