O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito sem um programa de governo. Sua estratégia de campanha foi resgatar as realizações de seus dois mandatos, o que não foi suficiente para garantir sua eleição no primeiro turno, mas o deixou na cara do gol no segundo. Para vencer, porém, teve que ampliar ainda mais as alianças e contar com a rejeição ao presidente Jair Bolsonaro, que era maior do que a sua, para se eleger por estreita margem de votos. Sendo mais específico, Lula teve 3,5 milhões de votos a mais no segundo turno; Bolsonaro, 7 milhões. Com toda certeza, a candidata do MDB, senadora Simone Tebet, os partidos que o apoiaram no segundo turno tiveram um papel decisivo nessa transferência de votos. A chamada “terceira via” foi esmagada pela polarização no primeiro turno, mas não a ponto de não fazer alguma diferença no segundo.
O drama de Lula ao assumir seu mandato é cumprir as promessas de campanha, principalmente o Auxílio Brasil/Bolsa-Família de R$ 600, que também serviu de plataforma para Bolsonaro junto às parcelas mais pobres da população, embora esse valor não tenha sido previsto no Orçamento da União de 2023. Lula gerou grande expectativa para os eleitores de baixa renda, principalmente as donas de casa, de que garantiria a comida na mesa, com direito a cerveja e picanha no fim de semana. Essa é a lembrança afetiva do seu governo no imaginário popular, como fora o frango a R$ 1 do Plano Real, na eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994.
No final do governo Lula, o país crescia a 7,5% em 2010, segundo dados do IBGE. O consumo das famílias, que se elevara continuamente ao longo dos anos, havia aumentado 7% somente em 2010. O crédito no setor público e privado era farto: chegara a R$ 1,7 trilhão, com crescimento de 20,5% naquele ano. As exportações cresceram 42,2% para o Mercosul, 39,3% para o bloco asiático, 26,2% para União Europeia e 23,2% para o mercado norte-americano. O saldo das reservas internacionais era de US$ 288,6 bilhões, com variação positiva de 20,7% sobre o exercício anterior. A dívida líquida total do setor público fora reduzida de 43,4% para 40,4% do PIB, equivalendo a R$ 1,47 Trilhão. A taxa de risco-país ao final de 2010 era atraente para os investidores internacionais: 186 pontos.
A taxa de desemprego e o aumento do salário real garantiram a eleição de Dilma Rousseff, Lula foi sucedido por “poste de saias”, como diziam seus adversários e até alguns aliados. A proporção de desocupados entre os economicamente ativos era de 5,3% em 2010. Ao longo dos exercícios de 2006 a 2010, os rendimentos médios mensais efetivamente recebidos pelos trabalhadores também apresentam contínua elevação. O saldo do registro dos trabalhadores contratados com carteira assinada em 2010 foi favorável. A diferença entre os trabalhadores admitidos e desligados em 12 meses foi de 2,5 milhões, uma evolução de 7,7% as mais do que empregados em 2009.
O porcentual de pisos salariais reajustados acima do índice oficial de inflação em 2010 fora de 93,8%, patamar acima do atingido em 2009, que ficou em 92,9%, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). O segmento mais beneficiado fora o rural, com ganho real em 100% dos casos. Na sequência, apareceram indústria (94,9%) e comércio (94,7%). No setor de serviços, 90,6% dos pisos salariais tiveram ganhos reais, ou seja, percentuais acima da 5,2%, a inflação oficial.
Energia positiva
Esse flashback demonstra que a retomada do fio da história a partir de 2010 é uma missão impossível. As condições são completamente diferentes, como disse na citada coluna. O ambiente econômico não permite que o governo Lula avance na área social como gostariam os seus eleitores; talvez por isso, sendo generoso na interpretação, Lula não tenha apresentado um programa na campanha: nas condições atuais, uma proposta espelhada em 2010 seria delirante; considerando a terra arrasada que herdará de Bolsonaro, decepcionante. Esse é o xis da questão da transição. Os dois primeiros anos de governo, fortemente contingenciados pela economia, serão de baixo crescimento e limitada mobilidade social, com um Congresso à espreita para chantagear o governo e uma oposição de extrema-direita estridente nas ruas.
Por isso, o trilho do novo governo Lula não pode ser o progressismo social, por falta de sustentabilidade, nem a agenda identitária da esquerda, devido ao conservadorismo da sociedade. Algum progressismo e avanço nos costumes deve haver, porém, devemos considerar o simples fato de que barrar a ofensiva reacionária do governo Bolsonaro já será uma mudança da água para o vinho. Os trilhos nos quais o novo governo deve e pode avançar são o fortalecimento da democracia, com respeito a suas instituições do estado democrático, e a ampliação da participação da sociedade nas decisões governamentais, de um lado; e aí uma agenda ambiental de vanguarda, que aponte fortemente para o desenvolvimento da economia verde, que é onde o Brasil pode captar muitos recursos para investimento numa nova indústria.
Entretanto, pressão das desigualdades do país é enorme. Essa agenda precisa ser tratada com foco em tarefas exequíveis, como garantir a segurança alimentar; melhorar a qualidade do ensino fundamental e médio; combater a violência e o racismo estrutural. O verdadeiro divisor de águas da eleição foi a defesa da democracia. Para isso, é preciso um governo de ampla coalizão política, capaz de dar sustentação ao presidente eleito e uma agenda que devolva a normalidade e a esperança ao país. Essa é a energia positiva que o Brasil precisa para reencontrar seu caminho.