Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap, a socióloga Maria Hermínia Tavares de Almeida publicou ontem, na “Folha de São Paulo”, a propósito dos 43 anos de fundação do PT, um excelente artigo sobre a trajetória do partido. Destaque para singularidade da sua gênese: “não ter surgido do interior do sistema político, por iniciativa do estado, nem tampouco de acordos entre políticos profissionais”. E o fato de que, com o tempo e no poder, “foi se achegando às nada republicanas formas de financiamento da vida partidária e das campanhas eleitorais, praticadas pelos partidos brasileiros de todas as colorações e que, mais tarde, explodiriam nos escândalos do mensalão e do petrolão”.
Sou velho leitor da professora Maria Hermínia Tavares de Almeida. Seu artigo “O Sindicato no Brasil: novos problemas, velhas estruturas”, publicado em julho de 1975, na revista “debate & critica” (assim mesmo, com minúsculas), teve muita repercussão na academia e no mundo sindical. Naquele momento, após o avanço da oposição nas eleições de 1974, a política de distensão do presidente Ernesto Geisel estava sendo substituída por uma nova onda de prisões e assassinatos, entre as quais as do operário Manoel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog.
Na conclusão do artigo, Maria Hermínia destacava a formação de um novo grupo de jovens sindicalistas à frente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, partir da intervenção do Ministério do Trabalho em 1969. Segundo ela, era o embrião de uma nova corrente do movimento sindical brasileiro, com um projeto organizatório e político-sindical mais afinado com o setor “moderno” dos assalariados fabris. Com base no programa da diretoria eleita em 1972, encabeçada por Paulo Vidal, na qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria primeiro-secretário, surgiu um sindicalismo mais próximo ao norte-americano: “combativo, 'apolítico' e solidamente plantado nas empresas, que viria a se tornar a vanguarda do movimento sindical, à margem do velho PCB, a partir das greves do ABC de 1978, lideradas por Lula, que presidia o sindicato desde 1975, e outros sindicalistas, como Osmar Mendonça, o Omarzinho, e Enilson Simões de Moura, o Alemão.
No artigo de ontem, Maria Hermínia retoma o fio da história ao mostrar que nas eleições diretas para a Presidência, em1989, era de se supor que a esquerda ganharia força, mas não se sabia quem a representaria: havia o PDT, de Leonel Brizola, que governara o Rio de Janeiro e herdara as bases remanescentes o velho trabalhismo varguista, apoiado pelo líder comunista Luís Carlos Prestes; o PSDB, liderado por Mario Covas; o PCB, que emergira para a legalidade enfraquecido devido às dissidências, a clandestinidade e o fracasso do chamado “socialismo real”, lançou Roberto Freire com um discurso de renovação, que não colou. Quem roubou a cena foi Lula e seu partido inovador, ancorado em movimentos populares, que venceu Leonel Brizola, até então, o principal líder da oposição, e disputou e perdeu o segundo turno para Collor de Mello, o favorito na disputa.
“A partir de então, o PT percorreu a típica rota das agremiações social-democratas europeias, adaptada ao lugar e momento histórico”, avalia Maria Hermínia. De fato, prefeituras e governos estaduais, hegemonizou o movimento sindical, seduziu servidores públicos e outros setores das camadas médias assalariadas. Pôs em prática sua agenda social, na saúde, na educação e na transferência de renda. Buscou reduzir as desigualdades e implantou as cotas raciais. Na economia, porém, deu um passo maior com as pernas, após a crise financeira internacional de 2008, ao trocar o pragmatismo do primeiro mandato de Lula pela nova matriz econômica, que entrou em colapso no segundo mandato de Dilma Rousseff.
“Agora, de volta ao poder, demonstrando espantosa resiliência, o PT tem a chance de rever na prática os seus erros e dar vida ao reformismo social possível, em tempos de penúria e de ataques ao regime de liberdades”, destaca Maria Hermínia. Quem primeiro me chamou atenção para essa resiliência foi o ex-deputado José Dirceu, no primeiro dia de volta à Câmara, pela qual seria cassado, após ser defenestrado da Casa Civil, por causa do mensalão: “quem vai salvar o PT são seus militantes”, vaticinou. Isso explica a gratidão de Lula pelo partido que criou e lhe permaneceu fiel quando estava preso e parecia liquidado. Talvez isso explique também o “sincericídio” de seu deselegante comentário em relação aos demais partidos, que chamou de “cooperativa de deputados”.
Por pura ironia, a governabilidade do governo Lula dependerá da maior das cooperativas, o Centrão. Não há a menor chance de Lula realizar um bom governo sem uma aliança pragmática com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que durante o governo Bolsonaro transformou o chamado “presidencialismo de coalizão” numa “partidocracia”. Lira monopolizou a “pequena política” do clientelismo e do fisiologismo, porém, na grande política, após a derrota de Bolsonaro, não ultrapassou as fronteiras da democracia. Os termos do seu acordo com Lula é outra história, mais cedo ou mais tarde saberemos. O risco é um novo “transformismo”, que repita os erros do passado.