Depois de 64 dias de afastamento, por determinação do Supremo Tribunal Federal, Ibaneis Rocha (MDB) reassumiu ontem o cargo de governador do Distrito Federal, do qual havia sido afastado na tarde de 8 de janeiro, pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do processo que apura a tentativa de golpe de estado. O motivo do afastamento foi a suspeita de que se omitiu em relação à ação das forças de segurança sob seu comando.
"Foram dias muito difíceis, mas esse afastamento que tivemos ao longo desse período foi necessário. A invasão dos prédios do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto foram significativos para a história desse país", admitiu Ibaneis, ao reassumir o cargo. Classificou como um “apagão” o comportamento das forças policiais sob seu comando, num cenário de inoperância generalizada. “Houve um relaxamento geral. A Força Nacional também não atuou”, disse.
Ibaneis defendeu seu ex-secretário de Segurança, Anderson Torres, que está preso, por envolvimento nas articulações do ex-presidente Jair Bolsonaro contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em sua casa foi encontrada a minuta do decreto de intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e afastamento do ministro Alexandre de Moraes. “Acredito que o 8 de janeiro tem que ser lembrado, mas não foi culpa só do Anderson e tenho certeza que a investigação vai apurar isso”, disse Ibaneis.
A volta de Ibaneis ao cargo para o qual foi reeleito sinaliza que as medidas de exceção adotadas por Alexandre de Moraes contra os golpistas estão se esgotando, devido à necessidade de preservar o devido processo legal. O inquérito das fake news, do qual é relator, não tem prazo para ser concluído e é muito criticado nos meios jurídicos, porque confere ao ministro do STF o poder de investigar, denunciar e julgar os envolvidos em atos antidemocráticos. Conduzido em sigilo por decisão da própria Corte, foi aberto em março de 2019 pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, sem provocação de outro órgão. Toffoli designou Moraes para conduzir o inquérito sem sorteio entre todos os ministros.
A primeira grande reação ao inquérito ocorreu quando 29 mandatos de busca e apreensão foram expedidos por Moraes, tendo como alvo pessoas suspeitas de envolvimento na rede de fake news bolsonaristas. Foram cumpridos em cinco estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina e no Distrito Federal. Bolsonaristas raiz eram os visados, como o empresário Luciano Hang, fundador da Havan, o deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP), a militante Sara Winter, o empresário Edgard Corona, presidente da rede de academias Smart Fit, os blogueiros Winston Lima e Allan dos Santos, e o presidente nacional do PTB, o ex-deputado federal Roberto Jefferson.
Legítima defesa
O inquérito excluiu a participação do Ministério Público nas investigações e se tornou alvo de críticas de procuradores, membros do Executivo e do Legislativo, que temiam uma concentração excessiva de poder nas mãos do Supremo. A então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, tentou impedir a continuidade dessa investigação, por considerá-la ilegal, mas seu argumento foi descartado por Moraes.
Seu sucessor na chefia da PGR, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, também esperneou, mas Moraes sustentou que só o STF tem prerrogativa para arquivar a investigação, já que ela é conduzida pelo próprio tribunal, não por promotores. A decisão de Toffoli fora premonitória diante da escalada golpista. O tempo corroborou sua decisão. Graças ao inquérito, os núcleos golpistas de extrema-direita foram identificados e os políticos que desafiaram o Supremo frontalmente, como os ex-deputados Roberto Jeferson e Daniel Silveira, ambos do Rio de Janeiro, acabaram presos.
O inquérito dos fake news também blindou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante o processo eleitoral, inclusive no dia da votação do primeiro turno, quando houve ostensiva atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para dificultar a movimentação de eleitores nas estradas, principalmente no Nordeste. O Artigo 42 do regimento do Supremo estribou a existência do inquérito: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro".
Segundo Toffoli, apesar de os crimes não terem sido praticados dentro do prédio do Supremo, os ministros “são o tribunal”. Sua tese se confirmou quando os vândalos invadiram e depredaram o plenário da Corte: fora do prédio ocupado pelos vândalos, os ministros usaram a espada da Justiça contra os golpistas. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto definiu as ações adotadas como um “ato de legitima defesa”.
“A democracia também tem o direito à legítima defesa. Se a sua vida, a minha vida, as nossas vidas são o bem jurídico maior, individualmente, o bem jurídico maior da coletividade, de personalidade coletiva, por definição é a democracia", explicou. "Então, a democracia tem mesmo o poder de abater, por meios que ela prevê, de abater quem se arma para abatê-la", concluiu Brito.