“Porque que um banco como o Brics não pode ter uma moeda que pode financiar a relação comercial entre Brasil e China, entre Brasil e outros países do Brics? É difícil, porque tem gente mal-acostumada, porque todo mundo depende de uma única moeda. Eu acho que o século 21 pode mexer com a nossa cabeça e pode nos ajudar, quem sabe, a fazer as coisas diferentes”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, em Xangai, durante a cerimônia de posse da ex-presidente Dilma Rousseff no Novo banco de Desenvolvimento, o banco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Dilma merece um parêntesis. Está sendo “reabilitada” pelo presidente Lula, depois do ostracismo em que viveu após o seu impeachment e a derrota eleitoral em 2018, quando concorreu ao Senado por Minas Gerais. Como se sabe, a “presidenta”, como gostava de ser chamada, foi destituída do cargo pelo Congresso, por causa das chamadas “pedaladas fiscais”, depois de uma sucessão de erros na condução da economia e uma tumultuada relação com o Congresso, principalmente depois da eleição ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) à presidência da Câmara.
A recessão, o desemprego e a onda de manifestações contra o governo a partir de 2013 não impediram a reeleição de Dilma em 2014, mas desaguaram no seu impeachment em 2016. No julgamento pelo Senado, porém, perdeu o mandato presidencial, mas manteve os direitos políticos. Após a derrota de 2018, Dilma foi escanteada pelo PT, mas voltou à cena política durante a campanha de Lula, que adotou a narrativa de que o impeachment fora um golpe de Estado.
Pode-se até considerá-lo um erro, pelo fato de o governo Michel Temer, que a sucedeu, ter desaguado na eleição de Jair Bolsonaro, porém, institucionalmente, Dilma foi apeada do poder num processo político legítimo, constitucional, cujo julgamento foi presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski, que acaba de antecipar sua saída do Supremo Tribunal Federal (STF), que presidia à época. Ao adotar a narrativa do golpe, Lula resgata lealdade com Dilma; ao mesmo tempo, ao mandá-la para a China, descola a ex-presidente de sua administração. Tudo o que Lula não quer é ser comparado com a ex-presidente, principalmente quando se fala da economia.
Entretanto, esse tipo de comparação vem sendo frequente, por causa da forma como Lula está tratando alguns temas econômicos, como as privatizações e a política de preços e investimentos da Petrobras. Na realidade, porém, há coisas alvissareira, apesar das previsões niilistas. O termo foi cunhado em razão da obra de Friedrich Nietzsche. Significa negação, declínio ou recusa de crenças e convicções, e seus respectivos valores morais, estéticos ou políticos, que ofereçam um sentido positivo para a vida.
Poder de troca
Os números recentes da economia surpreendem. A inflação está caindo nos Estados Unidos e no Brasil. O IPCA ficou abaixo de 5% no acumulado de 12 meses, apesar do imposto sobre a gasolina. Era quase 12% em junho do ano passado. O dólar ontem fechou em R$ 4,92, o que tende a reduzir a taxa de inflação e, consequentemente, a taxa de juros, que hoje está em 13,75% (Selic). Mantida essa tendência, o pior já passou. Com a aprovação do novo arcabouço fiscal, que foi bem recebido pelo mercado, e da reforma tributária, cujo impacto no PIB pode chegar a 10%, o governo Lula 3 poderá realmente mostrar ao que veio.
Lula deve se encontrar ainda hoje com o presidente Xi Jiping. É possível que anunciem a “desdolarização” do comércio com a China e demais integrantes do Brics. Não é uma proposta que agrade aos Estados Unidos, por motivos óbvios, mas ela pode ocorrer sem ruptura da institucionalidade do sistema financeiro mundial. Como? Graças ao banco presidido por Dilma Rousseff, que pode adotar um sistema de compensação para o comércio entre Brasil, Rússia, China, Índia, China e África do Sul lastreado no yuan chinês. Para se ter uma ideia do impacto dessa mudança, R$ 1,00 equivalente a Y$ 1,39.
No discurso de Xangai, Lula hipotecou solidariedade à Argentina, que aderiu à Rota da Seda, mas desistiu de “desdolarizar” o comércio com a China, depois das pressões dos Estados Unidos. O país vizinho está falido, cometeu muitos erros na condução de sua economia, tendo esgotado sua capacidade de negociação com o Fundo Monetário Internacional (FMI), no acordo firmado em 2018, o 21º com a instituição. A dívida argentina é de US$ 366 bilhões, dos quais US$ 170 bilhões (ou 46,4% do total) em moeda estrangeira. Não à toa R$ 1,00 equivale a PA$ 43,55. A cartada de Lula é incluir a Argentina nos BRICS e revitalizar o Mercosul, cujo mercado é vital para as nossas indústrias.
A disputa comercial entre os Estados Unidos e a China abre a possibilidade de o Brasil atrair investimentos desses dois países e da União Europeia, porque as cadeias de produção globais começam uma parcial regionalização. Ao mesmo tempo, a institucionalidade financeira e comercial do Ocidente está sendo utilizada contra Rússia, o que acaba fortalecendo o yuan como moeda com poder de troca no chamado “Sul Austral”. A manobra do Brasil, ao “desdolarizar” o comércio com a China, é arriscada, mas não carece do sentido de oportunidade. Tudo dependerá dos termos institucionais em que isso ocorrer.