Há muito a política deixou de ser monopólio dos políticos, magistrados, militares e diplomatas. Existe a política dos cidadãos, sobretudo agora, que as redes sociais passaram a ter um papel decisivo na formação de opinião e mobilização políticas, a partir de interesses individuais, para o bem ou para o mal. Essa ficha só caiu para as lideranças políticas depois das manifestações de junho de 2013, que completaram dez anos e estão sendo revisitadas. Para uns, foram o ovo da serpente do “neofascismo” brasileiro; para outros, a demonstração de que a crise de representação política dos partidos havia chegado a um ponto disruptivo, com a sociedade reagindo ao status quo. Ambos têm sentido.
O que não faz sentido é atribuir o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff a um plano golpista e maquiavélico, urdido pelos Estados Unidos, assim como a Operação Lava-Jato, ainda que os gringos possam ter dado um empurrãozinho, em algum momento. As primeiras grandes manifestações ganharam as ruas e praças, das grandes e pequenas cidades, a partir de protestos espontâneos dos jovens paulistanos, contra o aumento das passagens de ônibus, que foram duramente reprimidos. No Rio de Janeiro, igualmente, a repressão a um protesto de jovens contra a remoção dos ocupantes do antigo Museu do Índio, no Maracanã, foi o estopim das manifestações.
Devido à Copa do Mundo de futebol que se realizaria no Brasil, a palavra de ordem dos protestos era o “padrão Fifa” para a educação, a saúde, os transportes, a segurança etc., além das pautas identitárias de gênero e natureza étnica. Mobilizadas e organizadas pelas redes sociais, uma novidade à época, até mesmo para a União Nacional dos Estudantes (UNE), os protestos incorporaram grupos sociais e movimentos diferenciados, que buscavam uma pauta comum. As imagens da época mostram isso claramente.
Os protestos ocorriam quase diariamente, chegaram a 1 milhão de pessoas no Rio de Janeiro, até que esmoreceram em razão da repressão policial, da ação da extrema direita (milícias) e de grupos anarquistas (Black blocs), que começaram a promover atos de violência e vandalismo. Protestava-se contra tudo e contra todos, porém, principalmente contra a presidente Dilma Rousseff. Mas não o bastante para impedir a sua reeleição, contra Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (Rede).
As jornadas de junho de 2013 foram legítimas e republicanas, porém, gestaram um caldo de cultura e um modus operandi que ressurgiriam mais tarde, no segundo mandato de Dilma Rousseff, como um movimento político de oposição. Dessa vez, o fator unificador dos movimentos foi a Operação Lava-Jato, que investigou o escândalo da Petrobras e desaguou numa campanha em defesa da ética na política, protagonizado por movimentos cívicos de caráter liberal, mas que acabou hegemonizado por forças de extrema-direita. Trocou-se o irônico “Padrão Fifa” por um irado “Fora Dilma, fora PT”.
Tsunami eleitoral
Se 2013 foi um fenômeno da pós-modernidade, em sincronia com as mudanças do capitalismo globalizado, a crise de representação política das democracias ocidentais e a insegurança de cidadãos em busca de uma nova identidade, 2015 foi outra coisa. Quando os protestos chegaram a 1 milhão de pessoas na Avenida Paulista, com a realização de manifestações simultâneas em centenas de cidade, já era um movimento unificado com o objetivo de afastar a então presidente da República.
O movimento de oposição agregou insatisfações e demandas que brotaram em 2013, mas o que se viu em 2015 foi a centralidade da questão ética. Era o início da construção de uma nova hegemonia política no país, de extrema-direita, que ultrapassou os chamados movimentos cívicos. Em 2018, durante o governo Michel Temer, que havia assumido a Presidência, surgiu uma avassaladora candidatura antissistema, a do ex-presidente Jair Bolsonaro, cuja vitória era inimaginável até o fatídico dia da facada que levou em Juiz de Fora, durante a campanha eleitoral. Por causa da Lava-Jato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato até então favorito, estava inelegível e na iminência de ser preso. Seu candidato foi o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT).
O governo Bolsonaro foi autoexplicativo. O que mais importa neste retrospecto é destacar a volta por cima dos políticos nas eleições de 2022. Blindaram seus mandatos no Congresso, por meio do controle vertical dos partidos, dos fundos partidário e eleitoral e de uma fatia considerável dos recursos de investimento do governo, por meio de emendas impositivas, individuais e de bancada, ao Orçamento da União. Devido a isso, a vitória do presidente Lula nas eleições passadas, por apenas 1,8% dos votos válidos, não lhe deu uma maioria parlamentar, mas a contingência de ter que negociar com um Congresso mais conservador do que o que fora eleito em 2018.
E os jovens rebeldes daquela época? Majoritariamente, à medida que amadureceram, derivaram para posições mais conservadoras. As pesquisas eleitorais mostraram isso com clareza. Lula venceu com os votos dos muito jovens, das mulheres e dos nordestinos. A Operação Lava-Jato está sendo desconstruída pela alta magistratura do país. Os militares, que haviam voltado ao poder com Bolsonaro, se retiraram para a caserna, mais uma vez. Nossos diplomatas tentam implementar uma política independente, que dê ao Brasil um novo protagonismo internacional, mas esbarram na polarização fomentada por uma nova “guerra fria”, que opõe Estados Unidos e União Europeia à Rússia e China. E os cidadãos? Por enquanto, estão “astuciando coisas”, como diria o velho Hermógenes, folclorista capixaba.