Jornal Estado de Minas

Entre Linhas

A violência que espreita dentro de casa deve ser contida no Brasil

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O tema da violência voltou à pauta da política de segurança do governo federal com a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas faltavam até agora indicadores seguros para que essa política venha a ter o foco adequado. A primeira grande mudança foi em relação à política de controle de armas, que deve se intensificar a partir do decreto a ser anunciado hoje. Inverteu-se a situação: no lugar do “liberou geral” da posse de armas, que ocorreu durante o governo Bolsonaro, será restabelecida a política de segurança pública que busca, dentro do possível, o monopólio da violência pelo Estado.





A expressão monopólio da violência (“gewaltmonopol des staates”) foi cunhada pelo sociólogo alemão Max Weber, como atributo do Estado ocidental moderno: o uso legítimo da força física em defesa da sociedade, por meio de seus agentes legítimos. O conceito tem origem na figura do Leviatã, o mito relatado no Livro de Jó: um monstro gigantesco, meio dragão, meio crocodilo, que vivia num lago e tinha como missão defender os peixes mais fracos dos peixes mais fortes. O inglês Thomas Hobbes fez essa analogia em 1651 (Leviatã), para responder duas questões: como as sociedades foram formadas e como devem ser governadas?

É dele a famosa frase “homini lupus homini” (O homem é o lobo do homem), por ser egoísta e entrar em conflito uns com os outros. A racionalidade e “medo da morte violenta”, porém, acabam falando mais alto. Para Hobbes, era possível abrir mão da liberdade total e fazer um pacto, o “contrato social”, para sair da vida solitária e selvagem e viver juntos, sob um poder soberano, no “estado civil”, em vez do estado natural”. Para isso, é preciso um poder que os obrigue a respeitarem o contrato.

John Stuart Mill, no século 19, ou seja, dois séculos depois, porém, chamou a atenção para a necessidade de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a tirania da maioria. Resumiu a ópera da seguinte forma: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não cause m danos a terceiros; todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos que são causados a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional.

O debate sobre a posse de arma e o direito à autodefesa, num país que herdou uma cultura de violência do seu passado colonial e escravocrata, ao lado de profundas desigualdades, está associado à necessidade de restabelecer o controle do Estado brasileiro sobre o territorial nacional em grandes áreas controlados por trafican tes e milicianos, inclusive em grandes centros, como são os casos gravíssimos do Rio de Janeiro, do Nordeste e da Amazônia.





Violência doméstica


Entretanto, um dos dados mais assustadores revelados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, divulgado ontem pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram os casos de estupro, principalmente de vulneráveis, notificados no ano passado: 74.930, o que representa 36,9 em cada grupo de 100 mil habitantes. O número é 8,2% maior do que o registrado em 2021. Os casos de estupro de vulnerável,  56.820 vítimas, representaram 8,6% a mais do que no ano anterior. Segundo os dados, 24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, e 75,8% eram menores de 14 anos ou portadores de deficiência, enfermos etc. Crianças e adolescentes são as maiores vítimas da v iolência sexual: 10,4% das vítimas de estupro eram bebês e crianças com idade até 4 anos; 17,7% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 33,2% entre 10 e 13 anos. Ou seja, 61,4% tinham no máximo 13 anos. Aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade. Pela legislação brasileira, uma pessoa só passa a ser capaz de consentir o ato sexual a partir dos 14 anos.

De acordo com o anuário, no ano passado, 88,7% das vítimas eram do sexo feminino e 11,3%, do masculino; 56,8% eram pretas ou pardas (no ano anterior. eram 52,2%); 42,3%, brancas; 0,5%, indígenas; e 0,4%, amarelas. As not ificações mostram que 82,7% dos abusadores são conhecidos das vítimas e 17,3%, desconhecidos. Entre as crianças e adolescentes com idade até 13 anos, os principais autores são familiares (64,4% dos casos) e 21,6%, conhecidos da vítima, mas sem relação de parentesco. Entre as vítimas de 14 anos ou mais, chama a atenção que 24,4% dos abusos foram praticados por parceiros ou ex-parceiros íntimos da vítima, 37,9% por familiares e 15% por outros conhecidos. Apenas 22,8% dos estupros de pessoas com mais de 14 anos foram praticados por desconhecidos.

Ontem, no Correio Braziliense, o tema da violência foi abordado no seminário “Feminicídio: uma responsabilidade de todos”, que contou com a participação da vice-governadora Celina Leão, da titular da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), Letízia Lourenço, e do secretário de Segurança Pública do DF, Sandro Avelar. Muitos casos de feminicídio estão associados aos estupros. Em média, 68,3% dos casos somados de estupro e estupro de vulnerável ocorreram na casa da vítima. A proporção dos estupros de vulnerável que ocorrem em casa é de 71,6% e nos estupros, de 57,8%. A via pública foi o local apontado em 17,4% dos registros de estupro e em 6,8% dos de vulnerável. A maioria dos casos de violência sexual (53,3%) ocorre à noite ou na madrugada (entre 18h e 5h59). Quanto às ocorrências de estupro de vulnerável, que atingem principalmente crianças, a maioria (65,1%) foi ao longo do dia, entre 6h e 11h59, ou entre o meio-dia e as 17h59, período em que a mãe ou cuidadora em geral está fora.