A Carreira da Índia foi uma rota marítima anual entre Lisboa e Goa estabelecida pela armada portuguesa, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, de 1500 até a abertura do Canal do Suez, no século 19, com escalas regulares em Moçambique e os Açores. Foi a cabeça de ponte para os portugueses chegarem a Macau, na China, e Okinawa, no Japão. A outra rota era a triangulação entre Lisboa, Angola e Brasil, para o tráfico de escravos e a exploração comercial da cana de açúcar, do ouro, pedras preciosas e especiarias.
De certa forma, a projeção de nossas relações diplomáticas no chamado Sul Global tem raízes históricas. A parceria com a Índia é estratégica. País de cultura milenar, estrutura social perversamente organizada em castas, vítima de um colonialismo muito mais longevo do que o nosso, hoje é o fenômeno mais importante de desenvolvimento da atualidade. O pouso de sua nave espacial na Lua é emblemático resume sua importância científica e tecnológica.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria se debruçar sobre o que está acontecendo na Índia, o país mais populoso do mundo, com um desafio alimentar enorme, miséria secular e que avança em termos econômico e sociais. Com o 5º PIB do mundo, a Índia deve se tornar a terceira economia do planeta até o final desta década. Seu segredo foi abandonar o modelo autárquico no começo dos anos noventa e persistir no caminho de integração à economia mundial, o que começamos a fazer na mesma época, mas não demos prosseguimento.
Agora, a Índia é uma potência tecnológica, que exporta produtos com alto valor agregado. Está inserida no processo de reestruturação das cadeias globais de valor, porque sabe tirar partido da disputa comercial entre a China e os Estados Unidos. Tendo por pano de fundo essa disputa, a reunião do G20, na Índia, razão da viagem dedo presidente Lula, foi pautada por divergência entre os participantes em relação à guerra da Ucrânia, com a China e a Rússia alinhadas.
O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, pretendia transformar o evento num momento de projeção de seu país na cena mundial, na esteira das comemorações do pauso da nave indiana na Lula. Mas não conseguiu evitar que a declaração final do encontro fosse mais um documento sem grande repercussão.
Direitos humanos
Brasil e a África do Sul também foram protagonistas do encontro, mas foi aí que o presidente Lula atravessou o Atlântico e o Índico para escorregar no tombadilho. Em entrevista, disse que poderia rever a adesão do Brasil ao Tribunal Internacional de Haia, na Holanda, como uma alternativa para evitar uma possível prisão de Vladimir Putin, caso ele aceite o convite para participar de uma reunião de cúpula do G20 em 2024 no Rio de Janeiro. E admitiu que nem sequer sabia do tratado.
O Brasil participa da Corte Internacional desde 2002. O então presidente Fernando Henrique Cardoso foi um dos 123 signatários do Estatuto de Roma, que criou a corte, adesão devidamente ratificada pelo Congresso Nacional. Putin foi condenado em março passado pela corte, acusado de deportação forçada de centenas de crianças da Ucrânia para a Rússia.
A Rússia abandonou o Estatuto de Roma em 2016, sob alegação de não reconhecia a jurisdição do tribunal. Putin deixou de viajar para os países signatários do estatuto, razão pela qual não foi à reunião dos Brics, na África do Sul, e do G-20, no último fim de semana, na Índia. O presidente Ramaphosa até tentou viabilizar a participação de Putin na reunião dos Brics, mas foi demovido pelas pressões da oposição. A Aliança Democrática, adversária do Congresso Nacional Africano (CNA), partido no poder desde a eleição de Mandela, chegou a recorrer à Justiça. “Prender Putin seria uma declaração de guerra à Rússia”, disse Ramaphosa ao informar sobre o cancelamento da viagem.
O governo de Jacob Zuma, aquele negacionista que não acreditava na existência da AIDS, em 2015, já havia recebido o ditador do Sudão, Omar al-Bashir, apesar dos mandados de captura expedidos por crimes contra a Humanidade em Darfur. Seu convidado, porém, teve que fugir do país, porque um tribunal local decidiu sobre a sua prisão.
Lula flertou com a ilegalidade ao questionar a participação do Brasil no Tratado de Roma, pois isso está previsto na Constituição e até já indicamos uma jurista brasileira para Corte, a desembargadora Sylvia Steiner, de 2003 a 2016. Para recuar, disse que a vinda de Putin era um assunto para a Justiça brasileira resolver. Mas fez carga contra a corte, porque os Estados Unidos, a Rússia e a China não a reconhecem.
O Tribunal Penal Internacional é órgão de jurisdição de caráter supraestatal que tem por competência o julgamento de pessoas por violações e práticas de crimes de maior gravidade e alcance internacional: crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão. Entretanto, estamos em mora e inadimplentes com o tribunal.
No Congresso Nacional, há mais de dez anos, ainda que em regime de urgência, está engavetado o Projeto de Lei nº 301/2007, que tem por objetivo definir o que configuraria violação do direito internacional humanitário e demais infrações conexas. Nele, está apensado o Projeto de Lei 4.038/2008 que dispõe o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra. Para um governo comprometido com os direitos humanos, a declaração de Lula é um desastre. E mais uma afronta ao consenso nacional sobre a política externa