Argentina, Egito, Etiópia, Gana, Quênia, Paquistão, Sri Lanka, Tunísia, Ucrânia e Zâmbia estão à beira ou já entraram em inadimplência. Não podem contar com mais ajuda internacional, inclusive a Ucrânia, porque a economia global enfrenta grandes incertezas, em razão de dois fatores, principalmente: o primeiro, de natureza objetiva, as mudanças climáticas; o segundo, de características subjetivas, o fracasso da ideia de um mundo unipolar, sob hegemonia norte-americana, capaz de impor a paz mundial. A crise na Faixa de Gaza e a guerra da Ucrânia são sintomas mórbidos e patológicos desse cenário em mudança, que não se sabe ainda para onde. Com certeza, não é para onde estamos indo, apesar das nossas vãs expetativas de que a revolução tecnológica resolveria os principais problemas civilizatórios.
Mais ou menos como aconteceu com a Liga das Nações, entre a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, a decadência dos atuais mecanismos de governança global pode se tornar irreversível. A Organização das Nações Unidas, desde quando os Estados Unidos decidiram assumir o papel de xerife do mundo, passou a ter um papel de segundo plano nos conflitos regionais. Seu Conselho de Segurança se tornou o palco da “nova guerra fria” entre o Ocidente e o Oriente, polarizados pelos Estados Unidos e a União Europeia, de um lado, a China e a Rússia de outro. Conflitos que poderiam ser resolvidos num ambiente de cooperação entre essas potências estão sendo acirrados e saem de controle, como aconteceu na Ucrânia e, agora, se repete na Faixa de Gaza.
A propósito, a ação de Israel na retaliação ao ataque terrorista do Hamas ao seu território tem muita semelhança com a bagunça criada pelos Estados Unidos no Oriente Médio após o 11 de setembro, principalmente depois da invasão do Iraque. Nesse ambiente político, as previsões do FMI sobre a economia global são péssimas. Sem um ambiente de cooperação, os países dependentes em maiores dificuldades não terão a menor chance de retornar o caminho da estabilidade econômica e do crescimento. E os países desenvolvidos acabarão pagando um preço pelo caos que está se criando na ordem internacional, cujo sistema monetário está se fragilizando pela perda de blindagem política universal.
Na década de 1930, em cenário muito parecido, o resultado foi a ascensão do fascismo na Itália, Alemanha e alguns países do Leste Europeu, a Guerra Civil espanhola e, logo a seguir, a expansão militar nazista na Europa Ocidental e o ataque do Japão aos Estados Unidos, em busca do controle sobre os países do Pacífico.
Palavras mágicas
Globalização, liberalização do mercado, desregulamentação, privatização e fluxos de capital eram palavras mágicas para superação dos desafios do século 21, no qual a economia do conhecimento seria a chave para resolver todos os problemas da humanidade. Até a hora em que a China, com seu modelo híbrido de capitalismo estado moderno e ditadura de partido único, pôs em xeque a hegemonia norte-americana no comércio global. Emprego, bem-estar social, acesso à tecnologia, reindustrialização, mudanças climáticas, guerra comercial, nova corrida armamentista e guerra de verdade passaram a ser as palavras mais usadas do vocabulário das relações internacionais, inclusive no coração da Europa.
Nos encontros do Fórum Econômico Mundial, executivos e autoridades econômicas buscam soluções para os problemas globais, que possam ser lideradas pelas grandes corporações, a partir de um compromisso com a sustentabilidade, a boa governança e a transparência. Mas a realidade da reestruturação das cadeias globais de valor, consequência da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, frustram a transposição desses compromissos adotados pelas corporações mais modernas para todo o universo da economia global.
O falecido historiador britânico Tony Judt, que lecionou em Cambridge, Oxford, Berkeley e New York University, inspirou-se em John Maynard Keynes para escrever a coletânea de ensaios “Quando os fatos mudam” (Objetiva), cujo título tomamos emprestado. A frase completa é: “Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião. E o senhor, o que faz?” São artigos e ensaios copilados por sua viúva, a historiadora Jennifer Homans. Judt faleceu em 2010, aos 62 anos, como um dos maiores intérpretes do século 20, com destaque para o monumental “Pós-guerra. Uma História da Europa desde 1945”.
A maioria dos temas que abordou tem impressionante atualidade. Os textos sobre Israel, o Holocausto e os judeus somam oito capítulos, dois dos quais muito polêmicos: A alternativa e Israel precisa repensar seu mito étnico. Também são instigantes os que tratam do 11 de setembro e da Nova Ordem Mundial, entre os quais O antiamericanismo no exterior, A Nova Ordem Mundial e Existe um futuro para a ONU.
Para Judt, em 2005, quando publicou A Nova Ordem Mundial no New York Review of Books, a era das intervenções internacionais consensuais já estava se encerrando. Não é à toa que o Conselho de Segurança da ONU tenha tenta dificuldade para resolver os conflitos atuais, que sempre envolvem interesses econômicos e políticos da China, dos Estados Unidos, da França, do Reino Unido e da Rússia, países com poder de veto no organismo criado para a garantir a paz.
A aposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no multilateralismo, em busca de mais protagonismo internacional, ganhou mais relevância nessa crise de Gaza, uma vez que o Brasil ocupa a presidência provisória do Conselho de Segurança da ONU. Lula vem sendo uma luz na escuridão da crise da faixa de Gaza, mas seu sucesso precisa de as potências retornarem ao leito da cooperação e da busca pela paz. Quiçá caia a ficha de que o conflito na Faixa de Gaza não terá solução enquanto Israel ocupar e colonizar os territórios palestinos.