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Durante a pandemia, a cruz, o maior símbolo do cristianismo, tem ficado em destaque no mundo. Não só por servir como demonstração de que a humanidade tem carregado uma cruz de sofrimentos com as mortes, as dores, as incertezas, o isolamento.



Mas também para lembrar que a cruz da sagrada escritura é um convite à verticalidade e à horizontalidade. Olhar para o alto, para o céu acima do céu, onde está o Senhor. E olhar para o lado, estendendo os braços em direção ao outro. O famoso “Amai-vos como eu vos amei”, dito por Jesus enquanto caminhava com os discípulos por montes, vales e lagos.

No hábito de sempre se afastar para rezar ao Pai antes de grandes decisões ou momentos difíceis, O Mestre ensinou a entregar planos e sonhos primeiro a Deus. E depois cuidar do outro, como quando Ele voltava para a planície e ficava horas sem fim cuidando das multidões de aflitos.

É ao madeiro horizontal que muitas pessoas estão se apegando nos meses que nunca chegam ao fim da COVID-19. Nesse tempo de ruptura, de crise aguda que ameaça e tinge o horizonte, surgem as ações solidárias como um mecanismo de minimizar os danos diante da fragilidade humana e de se reconhecer no lugar do outro.



Aconteceu, com maior ênfase, a união dos membros da comunidade, como associações, empresas, famílias, organizações religiosas, Estado, todos enfim, em busca de agenciar a serenidade e a solidariedade.

A sensação de que estamos no mesmo barco serenou o mar de ondas revoltas mostrando que a margem pode estar logo ali e estimulando boas práticas. E muita gente se disponibilizou a ser a margem do outro, a dar a mão para atravessar o rio, a jogar a boia para quem não sabe nadar. 

Chamados a atuar com maturidade, habilidade e bom julgamento, muitas pessoas disseram sim e nesta quarentena o que não faltam são exemplos de generosidade, como vizinhos prestativos, amigos que se tornam mais presentes (ainda que virtualmente) e famílias mais unidas.



Ficaram conhecidos os bilhetes solidários de jovens colocando avisos nos elevadores oferecendo para fazer as compras em supermercados e farmácias para os idosos do prédio. Pessoas produzindo e distribuindo marmitas para moradores de rua que perderam a doação de comida dos restaurantes repentinamente fechados, e o caso comovente de uma professora de Curitiba que percorre 70 quilômetros para não deixar o aluno surdo sem aulas.

Pais que antes do vírus saíam de casa de manhã e só voltavam à noite, com pouco tempo para os filhos, agora encontrando encantamento em brincar de faz de conta com a criança sem escola e sem colegas. 

O avesso da vida acontecendo. Filhos assumindo as compras da casa, discutindo o preço da carne e do pão enquanto as mães tentam se distrair com as redes sociais e os filmes da tarde, uma longa tarde que parece não ter fim para quem passava o dia correndo na pressa das horas.



Demonstrações de gentileza se espalhando rapidamente, um olhar mais interessado pelo outro, a horizontalidade, enfim, exercida com maior frequência. E como, segundo Aristóteles, a virtude é hábito e treinamento, espera-se que ao fim de tudo a solidariedade tenha se enraizado na rotina e vida de cada um. 

Que o conhecimento e a memória criem uma nova esperança trazendo mais admiração que melancolia. No contexto da pandemia, onde todo mundo aprendeu que o distanciamento é necessário para um bem maior, a resiliência ganhou força – o descobrir que a vida é em cadeia foi um consolo para muita gente (“Não é só eu que vivo só”).

Tenho convivido com muitos e comoventes gestos de solidariedade que nos lembram o bom samaritano contado pelo evangelista Lucas. O samaritano que socorreu um homem assaltado e quase morto na estrada de Jericó, cuidando de suas feridas com azeite e vinho, levando-o para uma hospedaria e pagando suas despesas.

Nestes cinco meses de isolamento, a horizontalidade da cruz aconteceu entre nós. Foram milhares de pessoas ensinando umas às outras não a olhar para o pó da estrada, mas para as infinitas estrelas do céu. Gente que cuidou das feridas do outro com azeite e vinho. 

audima