Atravessamos duas estações que cumpriram plenamente seu ciclo natural sem se incomodar com as sombras que se abateram sobre a humanidade. Vivemos o tempo das folhas caídas pelo chão, das noites mais longas que os dias, da crepuscular paisagem durante os 90 dias de sabedoria do outono. E passamos para o tempo do frio das manhãs, do sol morno da tarde, do deslumbrante céu azul, do recolhimento do inverno. Como estamos entrando nesta estação em que dias e noites duram as mesmas 12 horas e onde a vegetação resplandece para todos? Estamos finalmente abrindo caminho entre um chão coberto de flores ou passando entre dores e espinhos? Como será esta nova jornada? O isolamento fez o tempo passar mais rápido, já entramos no novo normal ou o mundo continua de cabeça para baixo?
A estação das flores é um convite à alegria, mas sabemos que a pandemia afetou nossa percepção do tempo, parece que os limites foram alterados em todos os sentidos. Ainda resta a impressão de que foi transformado em ruínas o que parecia ser eterno e que há terra arrasada onde antes deslumbrávamos uma natureza indomável. Insistimos em manter lembranças de um tempo que não mais nos pertence, de coisas que nos faziam felizes e que sabemos não voltarão mais. Como se estivéssemos juntos numa roda de samba cantando Ataulfo Alves: “Eu daria tudo que eu tivesse/Pra voltar aos dias de criança/ Eu não sei pra que a gente cresce/ Se não sai da gente essa lembrança”. É antigo, mas aconteceu de novo: a gente era feliz e não sabia. Há muita coisa que não queremos deslembrar.
Passados o outono e o inverno, entramos na primavera sabendo mais, conhecendo mais, ouvindo mais, vendo mais. Não adianta fingir que não houve uma pandemia, que tudo vai ser como antes. Praia lotada não é sinal de que tudo voltou ao normal, porque cada banhista ali sabe hoje de coisas que não sabia antes, e o conhecimento do vírus faz toda a diferença. Estar com um sinal de alerta constantemente ligado indica que precisamos encontrar um novo jeito de ser feliz. Cientistas acabam de divulgar informações de que desde dezembro de 2019 até agora os pesquisadores de todo o mundo registraram 12 mil mutações do genoma do coronavírus. Como vencer o inimigo é a luta daqui para a frente.
A ciência, por exemplo, nos dá boas notícias, com a área de pesquisas apresentando mudanças pioneiras e revolucionárias. Os pesquisadores compartilham mais rapidamente seus estudos, milhares de cientistas trabalham incansavelmente, empresas investem milhões de dólares, universidades, grupos e centros de pesquisa colocam as melhores ferramentas a serviço das investigações, aumentando a capacidade de cálculo, avançando em direção aos testes e vacinas. Até os especialistas, com seu palavreado de difícil entendimento, se esforçam em se comunicar melhor, estimulados pela busca intensa por informações de jornalistas e pessoas mundo afora. Outro avanço é a introdução na nossa cultura da importância de certos hábitos de higiene e prevenção que ajudarão a deter este e outros surtos provocados por vírus.
Enfim, para citar outro cantor, Lulu Santos, “nada do que foi será/ de novo do jeito que já foi um dia”. Não conseguimos nos reencontrar no novo depois de ter sido despojados do antigo. Talvez porque as boas lembranças doam mais do que as más, talvez porque a ausência da antiga vida seja a medida do tamanho da ferida, evidenciando o que antes estava oculto. Mas, por mais que a gente perca alguma coisa, precisamos ganhar aprendendo com o novo. Não se pode achar que está tudo bem porque a luz da manhã agora nos encontra na rua, em movimento, fora de casa. Procurando a vida na profundeza ou na altura, é no procurar que a vida segue. O convite é fazer como o apóstolo Paulo. “Aprendi a me bastar em qualquer situação. Sei viver na penúria e sei viver na abundância, estando farto ou passando fome, tendo de sobra ou passando falta”. Depois de seis meses de quarentena, esta primavera cheia de flores que se nos apresenta deve significar abundância.