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Paola Carvalho: COVID-19 força transição do capitalismo

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Vivemos em uma sociedade onde não parece ser inconcebível interromper temporariamente a “atividade produtiva” para cuidar de vidas. O enfrentamento da crise, queira o presidente da República ou não, é parar, é ficar em casa para reduzir a velocidade de propagação até que a contaminação seja controlada. Temos a solução. A arma mais eficaz para enfrentar essa guerra, porém, pode ser a única que Jair Bolsonaro repudia.



Um resfriado e uma gripezinha não têm uma curva exponencial de contágio como a da COVID-19, não exigem internações a ponto de o Sistema Único de Saúde (SUS) e da rede hospitalar privada não darem conta de tratar todo mundo. O lockdown ou o isolamento social são capazes de reduzir a velocidade da contaminação e, consequentemente, o número de infectados que necessitam de assistência e internações todos os dias, evitando o colapso do sistema de saúde, a perda de vidas e um baque na economia – essa que talvez seja a única que o gueto de Bolsonaro quer proteger.

Na conferência virtual com líderes do G20, grupo das 20 maiores economias do planeta, sobre a resposta global ao novo coronavírus, da qual Bolsonaro participou, o recado evidente foi que os governos devem, ao mesmo tempo, seguir as determinações de proteção de suas populações e adotar medidas de estímulo à economia. Não é uma coisa ou outra, são as duas juntas. O Brasil não está acima de tudo, ele é parte de um todo. Em um comunicado conjunto foi dito que o combate à pandemia exige “uma resposta global com espírito de solidariedade, transparente, robusta, coordenada, de larga escala e baseada na ciência”. Isso mesmo, na ciência, aquela que vem sofrendo corte de investimentos pelo poder público.

Estudo divulgado pela respeitada London School of Economics, “The economics of a pandemic: the case of COVID-19”, preparado pelos professores de economia Paolo Surico e Andrea Galeotti, ambos do Wheeler Institute for Business and Development, aponta entre as conclusões a necessidade de os governos priorizarem gastos com saúde e estratégias que reduzam o contágio ao longo de 2020 e desembolsarem dinheiro para famílias e empresas.


Só uma conta, sem reflexões: o lucro líquido dos 4 maiores bancos do Brasil com ações na Bolsa de Valores (Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Santander) foi de R$ 81,5 bilhões em 2019, expansão de 18% na comparação com 2018. Apenas no quarto trimestre de 2019, o Itaú, maior banco privado da América Latina, registrou lucro líquido de R$ 7,296 bilhões, 12,6% a mais que no mesmo período do ano anterior. Tendo como base a renda básica emergencial de R$ 600 aprovada para o período da pandemia pela Câmara, com o lucro de apenas um trimestre daria para atender mais de 4 milhões de pessoas por três meses seguidos – é equivalente à totalidade da população das capitais Belo Horizonte e Goiânia juntas.

O Covid-19 traz a oportunidade de deixar ir conceitos fixados em um período da história da humanidade em que não vivemos mais (a era industrial) e deixar vir interpretações mais adequadas ao nosso tempo (a era digital). No passado, acreditavam ser infinitos os recursos do planeta e que estes se mantinham intactos e disponíveis para ser transformados em quantidades ilimitadas de produtos. Acreditavam no mito do crescimento eterno: produza muito, consuma muito, que todos terão trabalho. Repito, no passado.

Qual o futuro do capitalismo? Não dá para esperar uma única resposta à questão, uma única fórmula, um único pensamento linear tomado como verdade. Estudiosos de inovação defendem que, na era digital, onde experimentamos mais transformações em menores intervalos de tempo em razão de uma evolução em velocidade exponencial, o futuro é plural e, portanto, passam a usar o termo futuros. Assim, diferentes realidades que convivem hibridamente necessitam de também diferentes modelos, um entendimento sistêmico para um olhar local.



Profundas fissuras

Como diz o professor de economia e políticas públicas na Universidade de Oxford e autor do livro “O futuro do capitalismo” (editora L&PM), Paul Collier, profundas fissuras estão esgarçando o tecido das nossas sociedades: metrópoles dinâmicas versus o interior; os mais instruídos contra os menos instruídos; países ricos versus países em desenvolvimento. Tais rachaduras têm se agravado com o tempo e nós perdemos o sentimento de coletividade e de obrigação ética para com os outros que foi tão crucial para o boom econômico na segunda metade do Século 20. Até agora, tais cisões, na opinião dele, apenas serviram de terreno fértil para representantes das ideologias nostálgicas do populismo, levando a abalos da estatura de Trump, do Brexit e do fortalecimento mundial da extrema direita.

Collier lecionou na Universidade de Harvard e na Sciences Po em Paris, além de ter sido diretor do Centro de Estudos de Economias Africanas em Oxford. Foi ainda diretor do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento do Banco Mundial. O seu livro é polêmico uma vez que recusa tanto a fé cega da esquerda no governo quanto o da direita no livre mercado.

sNo final das contas, vivemos uma crise de valores, uma crise ética. Bolsonaro prefere tratar idosos como produtos de obsolescência programada, que depois de usados dentro do prazo de validade econômica estariam comercialmente mortos. O presidente - e não só ele - opera dentro do chamado egossistema, centrado no eu, enquanto o mundo exige uma transição para o ecossistema, focado no bem comum, conforme conceito defendido pelo economista alemão Otto Scharmer, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Para essa transição, também não há remédio - ainda.