Jornal Estado de Minas

ARTIGO

Os passos de um ícone da dança

 
Conversei com Evandro Passos, um artista generoso e querido em nosso estado, que nasceu em Diamantina e mudou-se para Belo Horizonte na década de 70, onde conheceu a dança afro-brasileira por meio de Marlene Silva. Além de ser jornalista, ele também é mestre pela Universidade Estadual de São Paulo - UNESP e, atualmente, está cursando o doutorado na Universidade Federal da Bahia - UFBA. Evandro é o criador da Associação Sócio Cultural Bataka e da CIA Evandro Passos, importantes projetos que promovem a cultura afro-brasileira e africana. Durante nossa conversa, tive a oportunidade de falar também com Marcos Antônio Cardoso, filósofo e mestre em História Social, doutorando em Ciência da Informação pela UFMG, além de ser professor de história da África e pesquisador das culturas negras no Brasil. Também conversei com Jéssica Knowles, que foi aluna de dança afro de Evandro Passos e atualmente é professora e está cursando mestrado em Dança na UFBA.




 
A biografia de Evandro Passos é um testemunho vivo da importância da presença negra na arte e na cultura brasileira. Com uma carreira de 40 anos dedicados à dança afro-brasileira e africana, Evandro tem sido uma voz fundamental na promoção da rica tradição cultural afro-brasileira e africana e na defesa da diversidade e inclusão cultural em nossa sociedade. Através de sua arte, ele mostra a importância dos países da diáspora na formação da cultura brasileira e do mundo.
 
Confira a seguir nossa prosa:
 
Patrícia: O que te despertou para a dança?
 
Evandro: O que mais me despertou para a dança foi a liberdade para expressar através do corpo. Eu via as manifestações tradicionais culturais em Diamantina e ficava fascinado. Pensava: "Quero fazer isto também". Era uma alegria contagiante e isso me despertou.
 
Patrícia: Fale sobre sua infância e posteriormente sobre sua juventude.
 
Evandro: No final dos anos 1970, me mudei da cidade de Diamantina (MG) para Belo Horizonte, capital do estado. Meu pai, funcionário dos Correios e Telégrafos, foi transferido, o que motivou a vinda de toda a família, composta de 11 irmãos, pai e mãe. Na capital mineira, inúmeros desafios a família iria vivenciar, distante daquela vida tranquila, hospitaleira que tínhamos em Diamantina.





Dos 11 irmãos, eu sempre acho que fui o que mais sentiu a mudança de cidade, e explico. Sou o sétimo filho, portanto, abaixo de mim eram todos crianças e os outros todos mais velhos, adultos mesmo. No momento da mudança, me encontrava na pré-adolescência, um momento ímpar da vida, quando várias descobertas acontecem. Sempre acho que os irmãos e irmãs crianças se adaptaram rápido, assim como os mais velhos. Eu, no entanto, sofria muito, longe dos meus melhores amigos e amigas de infância e que, assim como eu, naquele período estavam na pré-adolescência. Enfim, não foi fácil, mas sabia que não tinha volta, teria que me adaptar em Belo Horizonte de qualquer forma. Isto fez com que eu criasse vários subterfúgios, na tentativa de suprir a falta dos amigos e das amigas da querida Diamantina, cidade que amo tanto.

Com a mudança, a situação econômica do meu pai se complicou na capital, pois tudo era muito mais caro e ele não dispunha da tradicional “caderneta de anotação”, nos armazéns, como em Diamantina. Portanto, diversões, passeios, teríamos que optar por aqueles que fossem gratuitos e, por recomendação dos meus pais, locais que fossem seguros. Afinal, cidade grande, muitas coisas acontecem, reforçavam eles aos onze filhos, diariamente.

Minha diversão foi passear frequentando as portas dos teatros em Belo Horizonte. Teatros Francisco Nunes, Palácio das Artes e TV Alterosa, nos dias e horários dos espetáculos. Observar aquela gente chegando para os espetáculos me enchia de emoção, felicidade e excitação. Eu ficava sempre às espreitas, sem ser notado, achava eu. Ficava a imaginar o que seria um palco e um espetáculo, pois apenas ouvia falar. Minha imaginação fervilhava, era um misto de curiosidade e vontade de adentrar aqueles espaços. No entanto, eu já observava que naqueles espaços não se via pessoas negras como eu entrando para assistir aos espetáculos. Estavam sempre na porta olhando os carros, ou eram porteiros, ou vendedores e vendedoras de pipocas nas portas e imediações dos teatros.





Certo dia, estava eu na porta do Teatro Francisco Nunes quando um senhor negro se aproximou de mim e perguntou, “o que você está fazendo aqui, Dona Conceição e o Sr. José sabem que você saiu de casa?”. O susto que levei foi tamanho que nem percebi de imediato que ele havia dito o nome da minha mãe e do meu pai. Porém, imediatamente me desfiz do susto e percebi ser um vizinho, o qual já estava íntimo de minha família em Belo Horizonte. Ele era eletricista e havia feito um trabalho na nova residência e morava perto da minha casa.

Respondi afirmativamente, que meus pais sabiam, sim, onde eu estava. Foi quando ele perguntou:“Mas você não vai entrar para ver o show?”. Respondi que não, pois não tinha condições e que estava apenas admirando o teatro e observando as pessoas entrarem. Continuou ele: “Mas você quer entrar?”. Balancei a cabeça afirmativamente. O senhor, então, pediu que eu o acompanhasse. Quando observei, estávamos no fundo do teatro. Ele abriu uma porta e disse que eu podia entrar e disse “eu sou o eletricista responsável deste teatro”.

Nunca estive no céu, mas para mim foi como se aquele senhor tivesse aberto as portas do paraíso. Pelo local que entrei, eu já podia ver o rosto de todas aquelas pessoas que vi entrando para o teatro e as luzes coloridas pareciam que me saudavam. Foi um encantamento e uma emoção sem explicação, que pensei que fosse desmaiar naquele momento. O coração acelerou tremendamente. No centro do palco, estava a cantora Gal Costa, realizando o espetáculo “Caras e Bocas”. Este foi meu batizado em um teatro na capital mineira e na vida. Ao final, procurei o senhor que se chamava Pedro. Quanta coincidência com aquele que, no jargão popular, tem as chaves do céu, São Pedro. Agradeci quase de joelho. Ele esboçou um sorriso e falou, “toda vez que você quiser vir assistir algum espetáculo é só me avisar lá no bairro, podemos até descer juntos”. O que não hesitei em fazer outras vezes. Mesmo depois desta ida ao céu, meus passeios aos outros teatros não se encerraram. Pelo contrário, aumentaram ainda mais. 





Certa vez, fui para mais um passeio, desta vez na porta do Palácio das Artes, o maior da cidade. Imponente, elegante, mas, como disse, frequentado apenas por pessoas brancas. Neste, era quase impossível ver um frequentador negro. Nem os porteiros e nem bilheteiros eram negros, até os funcionários eram brancos. Pois bem, estava eu lá quando deparei com um rapaz, ruivo, de cabelos longos, bem ao meu lado. Ficamos ombros a ombro e ele perguntou: “Você gosta de arte, não é mesmo?”. Balancei a cabeça afirmativamente e ele continuou, “eu sei, já te vi aqui mais de cinco vezes, fico sempre a te observar de longe”. E eu, que sempre achava que ninguém me via, fiquei surpreso e com um certo medo. Achei logo que seria repreendido. 

Ele, então, olhou nos meus olhos e disse, “quero lhe fazer um convite, para você fazer um teste em um grupo de dança. Estamos precisando de homens e principalmente de homens negros como você. Aqui neste papelzinho que vou lhe dar está o endereço, com o dia e horário do teste ok?”. Virou as costas e saiu sem olhar para trás. Confesso que fiquei intrigado com aquele rapaz, medo mesmo. Pois me contavam coisas tenebrosas que aconteciam nas grandes cidades com pessoas desconhecidas. Porém, foi um medo misturado com emoção e curiosidade.

Ao chegar em casa, minha irmã mais velha, a única que já estava trabalhando fora de casa, me chamou e disse, “Evandro, você que gosta de arte, veja bem, recortei no jornal este anúncio de um teste para um grupo de dança”. Vindo de minha irmã, me senti seguro e me preparei para ir até o endereço que constava no anúncio. Ao chegar, deparei com o mesmo rapaz que havia me dado o papelzinho na porta do Palácio das artes. Assim que me avistou, ele disse bem alto, “que bom que você veio”. Mal sabia ele que estava ali pela minha irmã. Até porque o papelzinho que havia me dado joguei fora na primeira esquina, mesmo com muita curiosidade.





Foi este rapaz do papelzinho que aplicou o teste. Ao vê-lo dançar, para que repetíssemos os passos, reafirmava para mim o desejo de ser bailarino, exatamente como ele. O desejo de ser artista que eu já manifestava para a família se concretizava naquele teste de dança. Durante o teste, veio à minha imaginação eu dançando no centro daquele palco, onde vi a Gal Costa cantar e as luzes coloridas se intercalando.

O resultado do teste saiu no mesmo dia, eu fui aprovado e muito elogiado por este bailarino e por outros professores e professoras presente na avaliação. Disseram que as pessoas aprovadas já deveriam começar a frequentar as aulas no dia seguinte. Assim foi meu ingresso em uma primeira aula de dança profissional em Belo Horizonte, no Grupo Folclórico Aruanda. A inserção no mundo artístico foi marcada pela emoção, persistência e muita vontade em não parar nunca mais. Aquele bailarino professor, Geraldo Vidigal, se tornou meu grande amigo e uma das minhas referências no mundo artístico. O referencio em todos meus trabalhos artísticos, pois lhe agradeço imensamente pela acolhida e conselhos que foram constantes, para que eu não desistisse nunca da arte, mesmo naqueles momentos mais tenebrosos que certamente iriam surgir no caminho.

Patrícia: Como você se sente ao saber que várias pessoas que passaram pela sua formação estão atualmente envolvidas de alguma forma com a arte, questões sociais e engajadas em causas por um mundo mais justo?
 
Evandro: Ao ver vários multiplicadores e multiplicadoras que passaram pelo Bataka dando continuidade ao que aprenderam lá, fico extremamente feliz e realizado, sinal que minhas implementações deram certo na formação destas pessoas. É gratificante, 40 anos depois, você ver pessoas aplicando o que aprenderam no Bataka. Tenho a dança como mote, porém várias implementações são repassadas. A coerência do meu trabalho conseguiu transformar essas vidas. Mesmo as pessoas que não estão trabalhando diretamente com a dança, de uma forma ou de outras, aplicam o aprendizado em suas profissões e vida pessoal. 




 
Patrícia: Este ano, completando 40 anos de carreira, o que podemos esperar do Evandro Passos, que continua a dar passos generosos por onde passa?
 
Evandro: Sim, este ano completo 40 anos de carreira, e o que podem esperar de mim é que quero aprender, aprender ainda mais e repassar, repassar todo o aprendizado enquanto eu for vivo. Acho que tenho uma missão e quero cumpri-la da melhor forma, ensinando, educando, formando pessoas para um mundo melhor, mais justo, mais social. Hoje, tenho 63 anos, estou cursando o doutorado em Dança na UFBA e já estou com um pé no Pós-Doutorado. Acho que aprendizado é para vida toda. Gosto disto, aprender, ir para prática. Estou com um espetáculo, monólogo “Isidoro, Um Negro de Quilate” que retrata bem tudo que acredito. O espetáculo narra a trajetória de um homem preto, incansável por justiça e por um mundo melhor para os teus iguais. É isto que faço para que meus iguais conquistem o mundo. Aproveito para convidar a todos para assistirem. Estará dentro da Mostra Benjamin de Oliveira na MINULUS, na Rua Ituiutaba 345, com entrada gratuita no dia 06 de maio. 

Perguntei ao convidado Marcos Cardoso:

Patrícia: Evandro Passos é um artista que tem se dedicado há 40 anos a contribuir para a compreensão da identidade e noção ancestral da cultura de matrizes africanas, buscando, com isso, promover a emancipação dos corpos negros. Você, que acompanha a carreira deste mestre, o que você me diz sobre isso?
 
Marcos Cardoso: Evandro Passos é um dos raros artistas negros que, como um Mestre da Dança afro brasileira, desenvolve uma pretagogia na sua capacidade de articular a transmissão de saberes sobre os sentidos da corporalidade Negra, do corpo Negro com a história desse mesmo corpo no território como resistência política e Cultural. Neste sentido, Evandro Passos articula o seu trabalho com as danças negras, com o movimento social negro. E isso é raro no campo das artes negras que, ao coreografar os corpos negros para a dança, gera processos de emancipação e de fortalecimento das nossas identidades, de liberdade e de empoderamento político.
 
Já para a Jéssica Knowles, que foi aluna de dança de Evandro, perguntei: 

Patricia: Você foi uma das alunas do Evandro, de que forma a prática da dança afro impactou na percepção do seu corpo, na sua identidade cultural e na correlação entre a ancestralidade e comunidade? 
 
Jéssica Knowles: A dança Afro, através dos movimentos, musicalidade, batida dos tambores, norteou as trilhas de meus caminhos me conectando à minha ancestralidade, à minha identidade afrodiaspórica, nas quais pude enxergar o corpo que dança, não somente como corpo dançante, mas também como um corpo político, corpo que fala através dos movimentos. Conheci a dança há 12 anos e, desde então, ela se tornou parte da minha vida, me abriu muitas portas e, a partir dela, pratico ações de empoderamento cívico e de impacto social e cultural. Eu, como mulher preta periférica, só tenho a agradecer à Dança Afro e aos Mestres por abrir os caminhos que me trouxeram até aqui.




 
Por fim, é importante destacar que o legado de Evandro Passos vai muito além da sua própria trajetória como artista, e se estende para aqueles que tiveram a oportunidade de aprender com ele e se inspirar em seu exemplo de dedicação e comprometimento com a arte e a educação.
 
Ressalto ainda a importância de lembrarmos que a preservação da cultura e da história de um povo passa pela salvaguarda do conhecimento de seus mestres. É por meio da transmissão desses saberes que podemos manter viva a tradição e valorizar a diversidade cultural de nosso país. Evandro Passos é um desses mestres que merece ser reverenciado e seu legado deve ser preservado e transmitido para as próximas gerações. Viva a arte, viva os mestres!
 
Até breve.