Há anos, tenho conseguido colocar em palavras minhas experiências de vida. Porém estas duas últimas semanas no Malawi/África estou experimentando uma enorme dificuldade em fazê-lo, talvez porque esteja sendo muito dolorido processar o que estou presenciando, mesmo sendo a terceira vez que venho.
Nos fins de semana, nos damos o direito de ter um tempo livre, mas no último planejei ficar na sala de costura ajeitando as coisas de forma a remanejar meus passos, porque até então ainda não havia conseguido encontrar a melhor maneira de fazer o trabalho a que me propus fazer desta vez.
Porém, logo cedo acordamos com a notícia de que as fronteiras com alguns países da África estavam sendo fechadas. Confesso que não bateu desespero, apenas insegurança. O COVID nos assusta, claro, mas por aqui o cenário é diferente, a começar pelo fato de que a população do Malaui vive em pequenas vilas isoladas e poucos são os que visitam o campo de refugiados.
A fome e a miséria não permitem que se ocupem com outra coisa que não seja conseguir o pão de cada dia. Para piorar, por terem sido feitos cobaias dos laboratórios por muito tempo (querendo crer que não sejam mais), agora recusam a vacina. "Temos medo dos químicos", me explicou minha tradutora congolesa, criada em Moçambique. O índice de imunização aqui é baixo e felizmente o de contágio e mortes também, se compararmos com a maior parte do resto do mundo. O país tem cerca de 500 infectados atualmente e o número de mortes desde o início da pandemia é de cerca de 2.500.
Para nos tirar do foco das incertezas em relação à nossa partida antecipada ou permanência aqui, fomos chamados para participar de uma reunião numa vila malauiana ao lado do centro de acolhimento da Fraternidade Sem Fronteiras. Atualmente, somos 13 brasileiros aqui dentro do projeto. Seis de nós fomos acompanhar a reunião junto com um refugiado que nos serviu de tradutor do suaile, língua utilizada pela maioria dos refugiados, para o francês.
Descobri que as vilas malauianas conseguem ter piores condições de vida que o campo de refugiados. A reunião era para discutir que destino dar a duas crianças gêmeas cuja mãe morreu há uns três meses, vítima de tuberculose. O pai das crianças não tem como cuidar delas, muito menos os avós. Além dos dois, a mãe deixou outro par de gêmeos de seis anos, mas, imagine, esses já têm idade para trabalhar. Aqui você percebe que não há exploração do trabalho infantil, o que há é uma necessidade enorme de sobreviver e não há espaço e tempo para brincar.
Acompanhei a reunião com um dos bebês no colo. Eles têm oito meses, porém pesam no máximo quatro quilos. Parece que nasceram ontem. Empoeirados da cabeça aos pés, desnutridos e famintos, há uma semana estão tomando um complexo enviado pelo médico da nossa turma. A comunidade se reuniu para discutir o que fazer com elas. A gente percebe o quanto encaminhar um bebê para adoção é uma decisão difícil e dolorosa e naquelas condições indescritíveis se compreende que muitas vezes pode ser a única opção. A comunidade se sente responsável por todos os seus membros e por isso esse tipo de decisão deve ser coletiva.
Saímos de lá arrasados, em frangalhos. Para todos os lados que eu olhava naquela pequena vila, via três crianças para cada adulto, nenhuma fonte de água, de energia, muito menos de comida. Só uma terra ressentida na qual se tenta plantar alguma coisa. Voltamos para nosso oásis repletos de problemas e desafios, com a certeza de que os mais difíceis entre todos eles são os próprios seres humanos.